Desde 2006 vou à Mostra Internacional de Cinema de São Paulo para ver pelo menos alguns filmes. A programação é imensa e essa é uma ótima oportunidade para saber o que acontece no cinema mundial, pois muitos desses filmes não têm a chance de chegar ao circuito comercial, especialmente os alternativos – por mais que recebam ótimas notas. Como este ano temos a corajosa Isa Sinay para cobrir a Mostra pro Posfácio, resolvi escolher algumas poucas sessões para não fritar o cérebro – bons tempos em que 5 filmes por dia era fichinha e a corrida entre Shopping Frei Caneca e Cinesesc era um desafio gratificante.

Cada um dos cinéfilos presentes na Mostra tem um jeito próprio de montar sua programação. Uns vão por críticas, outros por listas de festivais internacionais, como de Cannes ou Veneza, e pelas nacionalidades também. Eu gosto de pertencer a esses grupos, mas também a ainda outro: o que simpatiza com o nome de um filme. Isso me rendeu ótimos títulos como Hiena, filme polonês que vi em 2006 e nunca estreou oficialmente por aqui.

Este ano comecei por um filme iraniano baseado em acontecimentos reais sobre um restaurante que servia carne moída humana. Peixe & Gato mostra em um único plano-sequência a viagem de estudantes de uma universidade para uma competição de pipas à beira de um lago. Enquanto montam acampamento, três cozinheiros passam pelos arredores à procura de carne para seu restaurante.

Os letreiros iniciais do filme contam a insólita história do restaurante para logo introduzir dois personagens asquerosos fisicamente. Indícios de que algo ruim está por vir ficam o tempo todo na atmosfera da projeção, que intercala entre diálogos inspirados e outros um pouco mais longos do que deveriam. Aliás, no começo é impossível não se incomodar com os off’s, recurso desagradável na maioria das vezes que é usado, cobrindo as falas dos personagens e chamando bastante atenção – o que só fará sentido no desfecho.

O tal plano-sequência único mostra vários ângulos da mesma história com a câmera migrando de um personagem para o outro, como um observador sempre atento. Todos os personagens cumprem uma espécie de circuito circular pelo cenário e sempre são deixados pela câmera após completá-lo. Diálogos se repetem para mostrar o que aconteceu antes ou depois de certos encontros, contudo não seguem uma ordem cronológica, o que exige uma atenção redobrada, principalmente para personagens que são meramente citados.

Peixe & Gato tem como destaque – além dos diálogos e do timing harmônico para a construir a ordem não linear da narrativa – o seu suspense sem sustos desnecessários. Mesmo com uma trilha sonora (excelente, por sinal) crescente nos momentos de grande tensão, é raro ver um personagem sair da moita fazendo “bu” ou mesmo trombando com o outro. Todavia, é fácil amedrontar-se com um dos cozinheiros, interpretado por Babak Karimi, quando surge na tela falando baixo e de maneira rouca, sempre com um saco fétido de carne ensopada de sangue às mãos, enquanto pede desculpas por incomodar um ou outro estudante. Há outros personagens interessantes e bizarros, como os gêmeos sem braços, o homem que circula despercebido e a menina com heterocromia.

A princípio a narrativa parece não ir a lugar algum, mantendo sua estrutura de ir e vir, até que as pequenas pistas e detalhes começam a dar contornos maiores. O diretor Shahram Mokri investe nestas pequenas pistas pelos cenários e nas constantes repetições nas conversas de seus personagens, mas não perde tempo em fazer inserts para mostrar “o fone daquela personagem que está cheio de sangue”, ou em diálogos expositivos. O espectador tem de estar atento ao que cada estudante está à procura nesse looping temporal. Afinal, eles estão sempre em busca de alguém que nunca aparece ou de objetos perdidos. Ou seja, não estamos assistindo a um filme de suspense que a qualquer momento alguém morrerá, mas sim vendo aquelas pessoas vivendo num eterno ciclo – limbo – e repetindo diversas vezes as mesmas histórias sem nunca encontrarem o que procuram. Em diversos momentos o ferimento na testa do organizador do festival é questionado por mais de um personagem, sem nunca receberem uma resposta sobre o assunto como se ele não soubesse da sua existência; ou quando esse diz ter um déjà vu sobre uma conversa, sendo que ela não ocorreu ainda.

Nessa narrativa circular, repetitiva e cheia de simbolismos em suas minúcias, chegamos a um terceiro ato que respeita tudo o que foi construído e criado ao longo dos dois primeiros – incluindo aí a razão pelos off’s deslocados citados no início –, encerrando a história de Peixe & Gato com maestria em um desfecho triste, mas essencialmente bonito.