Podia ser William, Henry, Holden, Falstaff – mas era para ser em português.

Podia ser Capitu, Helena, Iracema, Diadorim – mas era para ser mais comum.

Podia ser Pedro, José, André, Antonio – mas era Guilherme.

Gui.

É difícil dar nome para um personagem. Um nome pode parecer pretensioso, por fazer referência quase explícita a um clássico da literatura (“Bá, a galera toda me chama de Ismael. Pode me chamar assim também.”) ou por querer ajudar a construir a personalidade do personagem (“Mais um nocaute. Mais uma vez vitorioso. Ninguém consegue tirar o cinturão dele, pensa Victor, braços erguidos no meio do ringue.”). Um nome também pode parecer… blá* (*esquisito, não ter “a cara” do personagem).

A saída mais simples é: não dar um nome. Quando se trata do protagonista, então, maravilha! Sempre haverá boas interpretações que darão conta de explicar a ausência de nome. Talvez isso queira dizer que qualquer um de nós poderia ser ele. Talvez o artifício expresse uma identidade conflituosa e fragmentada: se ele não sabe quem é, como saberemos nós? – um nome só serviria, afinal, para nos enganarmos de que o conhecemos. No final das contas: o nome ausente pode ser tão pretensioso quanto chamar um personagem de Hamlet.

Para os que ainda gostam de denominar, alcunhar, apelidar, há nomes como Guilherme. Guilherme me parece um bom nome para um personagem. Todo mundo conhece um Guilherme; há bastantes Guilhermes por aí – na literatura, inclusive, o que de certa forma me surpreendeu. É fácil que o chamemos logo de Gui, ainda que eles nos alertem que não deram intimidade para tanto – ou, pior, ainda que não fosse esse o desejo dos pais.

 

A ideia de “Guilherme” não condizia com Gui. “Guilherme” evoca magnificência, solenidade. Marca-se hora para falar com “Guilherme”. Contudo “Gui” escapa da garganta, escapa da boca já gargalhando.

 

Gui soa comum o suficiente para não parecer que faz referência às aulas de História nacional ou regional. O tal do Guilherme podia ser o seu vizinho, o rapaz que sempre está na esteira ao lado da sua, alguém que você encontra na fila do pão ou aquele amigo que não se incomoda de ver você surrupiando a “fila do pão” da canção do Los Hermanos só para deixar a coluna com mais cara de “gente como a gente”.

Taí: um Gui pode ser imprevisível.

Pode ser que ninguém entenda qual é a do Gui. Será que ele está apenas aproveitando a tranquilidade de um final de semana no sítio? Ou ele quer mesmo deixar a Lilian, sua namorada, louca – de ciúmes ou pela rejeição? Ou ele só está “inchando de uma raiva concentrada que não podia manifestar, porque senão seria ele o fraco, seria reconhecer que tinha perdido”, alguém que se recusa a ser superado por quem já esteve em um relacionamento com ele? Um Gui bem que pode ser o cara sarcástico que adora ver quanto poder detém sobre os outros.

Mas o Gui também pode ser o novo namorado que, mesmo após ser avisado – “Gui, já me falaram que eu falo enquanto durmo, que eu ronco, que eu não ronco, que eu chuto, que eu me encolho, que eu abraço, que eu empurro, que eu fico parado e não faço nada…” –, continua querendo dormir junto. O cara que confessa: “Eu queria estar ali pro ataque epilético e pro trauma, pô. Queria ouvir.” Ele pode aparecer em apenas duas páginas de um romance com 240 e, mesmo assim, deixar sua marca. Esse é o Gui que apresentei a alguns amigos em plena livraria: “Lê aí, cara. São só duas páginas, não vou fazer você ler o romance todo agora, pô. Duas páginas dá pra ler rapidinho…”

E quando você acha que o jogo está empatado – um Gui que parece muito do mal, outro que parece muito gente boa, ainda que, em se tratando de Guis, tudo seja muito mais complexo do que aparenta ser –, eis que surge aquele Gui mediano, moderadamente feliz, bem casado, com uma filha linda, moço que mora perto dos pais, no surprises. A ovelha branca da família, ao contrário do Caio, o filho chamado assim porque “Depois do desastre de ‘Guilherme’, os pais optaram por um nome menor. ‘Um nome que jamais vai ter apelidos’, diziam.”, o designer homossexual que só vê a família em algumas datas comemorativas. Esse Gui-ovelha-branca é o homem médio que pode estar disposto a encenar a versão oposta de uma famosa história bíblica.

Deve haver outros Guis por aí. Se depender dos poucos que conheci, eles prometem e muito.

* * *

Três livros cujos Guis usei como exemplo na coluna (respectivamente)

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* Onze, de Bernardo Carvalho, romance publicado pela Companhia das Letras

* Quiçá, de Luisa Geisler, romance publicado pela Record, vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2011 | Romance (resenhado pela Dindi aqui e por mim aqui)

* Contos de mentira, de Luisa Geisler, coletânea de contos publicada pela Record, vencedora do prêmio SESC de Literatura 2010 | Contos