Em algum lugar existe um bairro habitado pelos grandes nomes da literatura. O Sr. Cortázar vive no mesmo prédio que o Sr. Gógol, o Sr. Melville e o Sr. Henri. Na construção ao lado, encontramos o Sr. Kraus e o Sr. Voltaire. Mais acima, o Sr. Brecht, e um pouco mais além, o Sr. Rimbaud, o Sr. Balzac e o Sr. Carroll. Ainda há muitos senhores – e a Srª Woolf – morando neste lugar criado por Gonçalo M. Tavares, uma região fictícia para aqueles que se dedicam a fazer ficção. O bairro é uma série de livros do escritor português que fala de cada um desses moradores, dezenas de obras inspiradas em autores consagrados, que há pouco descobri ao ir em uma palestra sobre o autor (minha especialidade em eventos literários: frequentar palestras sobre escritores que ainda nem li). Saí de lá querendo ler qualquer coisa dele, e dias depois já tinha em casa duas de suas obras: Aprender a rezar na era da técnica e O senhor Henri e a enciclopédia. É sobre Henri que este texto vai falar.

O senhor Henri e a enciclopédia é o segundo livro da série O bairro, inspirado no poeta belga Henri Michaux. Do primeiro capítulo ao 36º, o senhor Henri não larga o seu copo de absinto, e quanto mais bebe, mais falador fica. Durante toda a narrativa Henri monologa sobre os verbetes que lê em sua enciclopédia todos os dias, demonstrando seu conhecimento sobre o mundo para os colegas de balcão do ilustre estabelecimento que frequenta – o bar. O absinto é como um combustível que o senhor Henri pede a cada três ou quatro frases, mais um copo, por favor. Ou, como ele prefere dizer:

 

(…) o absinto é minha teoria sobre o mundo.
… eu tenho um sistema geral do pensamento, chama-se absinto.

 

Assim, de um copo a outro, o senhor Henri vai desfiando seus saberes, falando e falando mais e mais sobre tudo aquilo que conhece: filosofia, matemática, astrologia, alquimia, anatomia, etc. Tudo que possui um verbete em sua enciclopédia ele conhece, e a ordem alfabética é seguida à risca. Mas diferente do que se pode pensar, o senhor Henri não é um sabichão, mas sim um senhor espirituoso que fantasia a realidade. Assim como o absinto lhe colore os dias, ele imprime novos olhares e interpretações para as coisas do mundo. Gonçalo M. Tavares cria belos jogos de palavras que projetam cenas poéticas sobre o conhecimento que o senhor Henri adquire.

 

O senhor Henri pensou mais um pouco e disse: já percebo por que razão se começa a pensar.
… É por causa do cansaço.
… Se todos os homens tivessem uma boa condição física não haveria um único filósofo.
O senhor Henri, antes de recomeçar a andar, disse ainda: felizmente no mundo, existe o absinto.

 

A explicação para toda essa fantasia misturada à realidade pode estar, claro, no próprio absinto – do mesmo modo que ele é o responsável pelas pausas no discurso de Henri, marcadas pelas constantes reticências do texto. Misturar a bebida com a realidade, segundo o senhor Henri, melhora essa realidade. Contudo, misturar a realidade com o absinto piora a qualidade da bebida. Sendo o absinto sagrado para o senhor Henri, é melhor que a realidade se mantenha bem longe dele. Sorte – ou azar – de seus ouvintes do bar, que são agraciados diariamente com a filosofia trôpega deste ilustre morador do bairro.

Além de “enfeitar” os verbetes de sua enciclopédia, o senhor Henri faz a seus ouvintes interessantes relações entre temas completamente diferentes. Por exemplo, ele fala sobre a invenção do microscópio e da democracia, e mostra como uma coisa tem a ver com a outra. Ele versa sobre como se adquire conhecimento, que se aprende com todas as partes do corpo (o que, para ele, não é nada “higiênico”), e também sobre como o telefone e os aviões afastam as pessoas, ao invés de as aproximarem. São maneiras singulares de enxergar o mundo, que contrariam o senso comum – e até a ciência.

 

… é necessário estudar o corpo com muita atenção para conseguir matá-lo com rapidez – disse o senhor Henri.
… qualquer idiota, como o Tempo, demora 70 anos a matar uma pessoa.
… para matar num milissegundo é que é necessária muita ciência.
… concluímos, portanto, que o Tempo não é um estudioso da anatomia humana.
… já uma enorme pedra em cheio na cabeça…
… há doutores nos lugares mais impensáveis, eis o que é.

 

O senhor Henri e a enciclopédia foi uma ótima leitura para conhecer a obra de Gonçalo M. Tavares, e com certeza vou querer procurar os outros livros da série. Ainda mais porque, segundo a Vanessa Hack Gatelli e o Reginaldo Pujol Filho – os leitores mais entusiastas daquela conversa –, é possível perceber a evolução literária do autor com a leitura de O bairro e ver o quão diferente ele pode ser de um livro para o outro. Mesmo sendo o meu primeiro contato com ele, acho que posso dizer que Gonçalo M. Tavares já tem seu lugar garantido no meu inventário de ótimas leituras.