Karl Marx é certamente um dos sujeitos mais mal interpretados de todos os tempos. Não à toa, entretanto. As sucessivas sabatinas a que tem sido submetido desde que seus escritos vieram a público não levaram a toda a sorte de conclusões por falta de clareza de seu autor; mas sim porque, diante de um pensamento que põe em questão as bases sob as quais a realidade está ancorada, a disputa era um dos expedientes que cedo ou tarde viriam a acossá-lo. A vividez e a atualidade de seu pensamento são justamente as características que fazem com que tão encarniçada batalha seja encampada diária e mundialmente.

Perante tal situação, colocar-se em face do problema, fora ou dentro do “campo marxista”, é uma tarefa bastante complexa. E isso era algo do qual o autor tinha clareza quando quis que seus escritos fossem mais do que pura abstração: a ação política não pode estar descolada do pensamento intelectual, e a recíproca é tão verdadeira (e essencial) quanto. Marx abriu uma questão que não podia ser ignorada por nenhum dos pensadores que existiram depois dele, reclamassem eles sua herança ou não.

Levar a cabo tal missão – postar-se diante das questões que Marx abriu – é uma tarefa hercúlea e não são poucas que enveredaram por interpretações mecanicistas ou superficiais dos escritos do filósofo alemão. Marshall Berman, por conta dessa ameaça constante, toma o cuidado de não se deixar iludir por extremismos, sabendo apreciar os textos de Marx, mostrar suas potencialidades e idiossincrasias, bem como atualizá-los dentro da “nova” realidade a partir da qual fala. Esse é o mote que norteia os ensaios contidos na coletânea Aventuras no marxismo.

Eu tenho vontade de escrever sobre cada artigo ou resenha que compõem o livro. A exploração horizontal e vertical que ele empreende sobre cada tema, livro ou questão é de uma riqueza ímpar. A própria escolha do título revela uma intimidade com o tema, calcada num estudo minucioso da obra e da vida de Karl Marx, que lhe permite associar a palavra “aventuras” sem descambar em frivolidade.

Não vou falar sobre todos os ensaios, mas destacarei alguns pelos quais tenho especial carinho. O primeiro, “Studs Terkel: vivendo no mural”, é uma resenha do livro – de título gigante – do sociólogo estadunidense Studs Terkel, Working: People talk about what they do all day and how do they feel about what they do (Trabalho: pessoas falam sobre o que elas fazem o dia inteiro e como se sentem em relação ao que fazem). Para mim, que pesquiso a década de 30, o ensaio é um prato cheio, mas para quem não se interessa pelo tema, é um texto repleto de vigor a respeito dos significados humanos do trabalho apesar da precarização a que ele é submetido diariamente.

Ao invés de encontrar pessoas cheias de depressão e confusas entre o fatalismo e a alienação, Berman evoca o Terkel que se encanta com a capacidade surpreendente que as pessoas têm de injetar subjetividade e vida em seus trabalhos, por mais monótonos, mecanizados ou repetitivos que eles sejam. O ensaio (e creio que o livro também) é um antídoto contra os fatalismos altissonantes com que o “mundo do trabalho” tem sido analisado por uma série de pensadores.

Outro que considero ótimo é “As pessoas em O capital“. Berman vai além do calhamaço, que para muitos é inacessível, e mostra como a sensibilidade de Marx fez com que seus escritos esbanjem vivacidade ainda hoje. Berman consegue analisar O capital tanto em seu conteúdo quanto em sua forma (seus recursos narrativos, suas metáforas, seu estilo e, por conseguinte, seus significados subjacentes). Assim, ele mostra como o livro que tem fama de tedioso é na verdade um tratado sobre a sociedade e a história dos homens lastreado num humanismo que raramente é trazido a lume por aqueles que lhe querem analisar.

Sentimento similar é encontrado em “Os sinais nas ruas”. Respondendo à crítica que Perry Anderson dirigiu ao seu livro Tudo o que é sólido se desmancha no ar (soberbo, aliás), Berman mostra através de pequenos fragmentos cotidianos que os augúrios apocalípticos que Anderson reclama não estão incrustados na vida social como estão em seu pensamento. Singelos exemplos, enraizados na observação empírica mais direta, constituem a prova de argumentação de Marshall Berman, pois eles estão pululando de vida bem em frente aos reclames mortificantes de Anderson.

O recorte do segundo capítulo de seu livro supracitado, presente nessa coletânea com o mesmo título, “Marx, marxismo e modernização”, é de um virtuosismo impressionante. Ao mesmo tempo em que enxerga o fechamento de vários horizontes, algo que encara com pesar e consciência, Berman procura voltar-se aos novos que querem se abrir, embalado pelo que ele chama de “humanismo marxista”.

Berman quer expandir nossa compreensão do marxismo e o faz através da exploração de facetas menos conhecidas do pensamento de Marx, principalmente aquelas que se encontram subjacentes no texto. Longe de se deixar prender por um uso exagerado de conceitos ou por uma abordagem abundante da terminologia marxista, Berman mostra aquilo que parece ter se esquecido a respeito de Marx: que por baixo de todos os seus escritos e projetos políticos, estava um humanismo inspirador.