Há muitos livros que, apesar de uma acolhida intensa por parte do público em um primeiro momento, logo depois caem no esquecimento ou não vão muito além das terras onde foram lançados. Infelizmente, acredito ser este o caso de Às avessas (À rebours), lançado em 1884, por Joris-Karl Huysmans. Trata-se de um romance que, em especial para nós, brasileiros, figura na história literária, mas que nem sempre é lido com entusiasmo. Para a maioria dos leitores, acredito que simplesmente é um título desconhecido. José Paulo Paes, um dos poetas-tradutores mais ativos de nossa história, foi o responsável por apresentá-lo ao público de língua portuguesa ao lançar sua tradução, em 1987, pela Companhia das Letras, que o reeditou neste ano de 2014.

Apesar de chamarmos Às avessas de “romance”, essa obra é justamente daquelas que nos fazem sentir dúvida diante de livros contemporâneos que atenuam as fronteiras entre os gêneros literários. Talvez seja dos primeiros romances modernos que, em sua recepção, causaram estranheza por sua estrutura, sua forma de narrar. Para o autor, em prefácio para edição de 1903, assim como para os críticos que o recepcionaram, o romance se afasta da estrutura narrativa convencional, se situa longe dos moldes naturalistas e realistas da época, inclusive pela ausência de enredo, de intriga. Para nós, leitores do século XXI, essa afirmação talvez não seja consensual. É um romance transgressor, mas todo transgressor atenta numa moral que pode mudar. Ainda assim, Às avessas diz muito a qualquer moderno (ou pós-moderno, se preferirem).

O próprio Huysmans temia que seu romance ganhasse um ranço com o passar dos anos. No prefácio que escreve vinte anos após a primeira edição, disponível como anexo na edição da Companhia das Letras, ele nos diz que percebe que o tempo passou, mas, pessoalmente, ainda vê motivos para ler o livro que o consagrou no meio literário. Para nós, que vivemos no auge do capitalismo, podemos nos identificar também com boa parte das angústias de Des Esseintes, o protagonista, praticamente a única personagem do romance. Se não nos vemos nele, vemos muitos de nossos contemporâneos ali.

Des Esseintes é e foi visto como o decadentista exemplar, em especial a partir da última década do século XIX, a partir da redefinição popular do dândi. O dandismo de Des Esseintes, apesar disso, não coincide exatamente com a figura do excêntrico rico e frívolo, alheio aos problemas do mundo. Ele percebe, como pode se ler por meio da “notícia” do romance, sua introdução, que se situa à margem das convenções sociais da burguesia francesa. É um aristocrata em um mundo em que os aristocratas já não conseguem se impor do mesmo modo que sob o Estado absolutista. O quadro inicial da obra, que situa a personagem em relação à sua linhagem, sua família que se desintegra aos pouco, mostra como Des Esseintes é, de certo modo, um sintoma de uma decadência que toma conta da sociedade, da “civilização” francesa sob a modernidade feroz.

Esse mito da decadência, tão moderno quanto antigo, existente desde a Roma antiga, toma aqui uma nova forma. Ao longo dos capítulos de Às avessas, que tratam cada um de algum aspecto pertinente da personalidade do protagonista, percebe-se que a Antiguidade clássica e tardia são as bases de quase toda a avaliação crítica sobre os fatos do mundo. Des Esseintes, criado em colégio jesuíta e, desde cedo, interessado pela cultura letrada, pelos latinos e pelos franceses, dispõe suas resoluções acerca do cotidiano em sociedade sempre através de uma percepção estética, nunca com base na ciência, na contramão das tendências filosóficas de sua época, em que o Positivismo reinava.

Assim como Huysmans, que se afasta do Naturalismo quase didático de suas primeiras criações, sua personagem busca por um pessimismo em relação ao progresso humano pelo conhecimento se situar diante dos outros. Pela incapacidade de aplicar seus ideais em sua vida, de lidar e se relacionar com as pessoas, Des Esseintes escolhe simplesmente se isolar, fugindo do centro de Paris para se abrigar em uma casa à beira do campo, imerso em sua própria sensibilidade em tempo e espaço próprios. Sua posição como outsider social, mas não econômico, lhe dá esse ar de decadentista protótipo que assumiu com o passar das décadas.

Não podemos, no entanto, assumir que não há qualquer ironia no retrato de Des Esseintes. Ao contrário de outras personagens, como o Axël de Villiers de L’Isle-Adam, é fácil ver que Huysmans não deixa de ironizar a personagem e, inclusive, o escritor, ou seja, rir de si mesmo ao tentar situar a trama (ou a ausência dela) em uma forma aparentemente naturalista, ao gosto de Émile Zola. A procura por uma nova estética romanesca que trate de alguém que se situa fora do comum, do que pode ser explicado pela minúcia científica e entendido em sua plenitude, surge justamente como intenção de se reposicionar enquanto artista no mundo. Mais tarde, Huysmans assumirá, assim como Des Esseintes, seu interesse pelos autores latinos da “decadência” e pelos franceses que lhe são contemporâneos, que são chamados também de decadentes (ou ainda “nefelibatas”, como os simbolistas pela crítica brasileira).

No caso do autor, entretanto, o pessimismo em relação à modernidade o leva a uma compreensão religiosa da vida e à consequente conversão ao Catolicismo. Essa foi sua redenção. Des Esseintes, ao contrário, resta “prostrado” em sua morte, assim como sua mãe, ao pensar-se curado de um “vaga moléstia”, assim como seu pai. Como em outros momentos do livro, fica a dúvida se temos aí uma paródia naturalista ou uma visão que busca a exatidão das coisas, prezada pelo autor ao longo de sua vida, apesar do afastamento dos ditos de Zola.

Huysmans transmite tanto pela literatura quanto pela crítica uma incrível compreensão sobre si mesmo que o leva, inclusive, a apontar erros em si mesmo sob sarcasmo, como em uma resenha que escreveu sob pseudônimo sobre a própria obra, texto este disponível, junto como outras visões sobre o romance, em anexo à edição brasileira mais recente. Sua crítica de arte, hoje aclamada por apontar figuras que hoje são fundamentais para a história das artes plásticas, também nos auxilia na tarefa de entender o escritor. O fato é que Às avessas permanece, apesar disso, como um retrato de um artista sem arte, de um homem às avessas que não está longe do ser moderno em geral.