Sempre nos referimos, hoje em dia, a alguém como “gótico” quando se veste com roupas pretas e cultiva gostos ou hábitos que parecem macabros ou profanos de algum modo. Além de, claro, gostar do que chamamos de gótico musicalmente, sendo um post-punk como Bauhaus ou até mesmo goth metal. Em literatura, dizemos que algo é gótico em situações que podem variar, assim como na música ou na moda. Pode-se falar do gótico inglês, que, nas mãos de Horace Walpole e Ann Radcliffe, se torna um romance de características fortemente românticas, ou até mesmo do gótico posterior, ligado principalmente ao terror, ao obscuro, ao ocultismo. Nas artes plásticas e na arquitetura, o gótico tem ligação maior, desde a Idade Média, com a religiosidade extrema, com uma austeridade dos valores cristãos.

Em língua portuguesa, é difícil dizer que temos uma tradição gótica; no máximo, talvez momentos na história, alguns textos de alguns autores. Hoje em dia, o gótico parece se dar por meios distintos na literatura, e acho que em José Luís Peixoto temos alguns deles. Mas não sou nenhum especialista no assunto (na verdade, em nenhum assunto), por isso deixo aquela interrogação no título do texto. Uma casa na escuridão (2002), segundo romance do escritor português, talvez indique esse caminho gótico do qual falo.

O próprio autor, que tem uma banda de heavy metal, talvez não goste da associação com o gótico que faço, considerando a aversão de muitos fãs do gênero musical àqueles amantes melancólicos das trevas. Apesar disso, é difícil não ler esse romance como melancólico. Não se trata de um exibicionismo juvenil, de adolescente que quer se diferenciar do colega por ser alguém do “mal”. Assim como em Livro (2010), um de seus últimos romances lançados, vê-se a violência das relações humanas, esgarçadas por forças maiores, mas não exatamente divinas. Apesar da forte religiosidade da cultura portuguesa, é possível notar nesses dois romances, e talvez também no premiado Nenhum olhar (2000), a ausência de Deus, ao menos sob a visão cristã benevolente.

Em Uma casa na escuridão, portanto, não há o profano como rejeição de Deus; na verdade, não há aqui uma moral religiosa como conhecemos. Por seu singelo título, já temos uma deixa acerca da ambientação do enredo: temos uma casa, apenas uma casa, na escuridão. Parece bobo reforçar isso, mas se trata exatamente do espaço principal da trama, que nos remete ao decadentismo francês, a obras como aqueles de Huysmans e Villiers de L’Isle-Adam. Assim como Axël (1890), por exemplo, o romance de Peixoto se passa num lugar aparentemente isolado da sociedade, exceto por trechos em que a narração apenas relata acontecimentos que se deram fora do âmbito da casa, sem realmente definir um espaço. A casa não se parece tanto com nossa sociedade quanto poderíamos esperar, mas não se trata de falta de verossimilhança da parte do texto; Peixoto parece sugerir um sonho. Mesmo assim, é complicado definir tudo como um sonho, porque não existe um despertar. Tudo ali, apesar de horrível, apesar da linguagem que lembra contos de fadas, apesar de parecer um pesadelo, parece violento de verdade.

Essa violência que parece tão verdadeira na aura fantasista do enredo, cujas personagens têm nomes como “príncipe de calicatri” e “visconde de dedodida” (todos grafados em minúsculas), também lembra de outro contemporâneo português premiado, Gonçalo M. Tavares, não somente pela série, ou melhor, da tetralogia romanesca “O reino”, mas também por alguns dos volumes da série “O bairro”. Gonçalo também se apropria da tradição do romance fantástico para criar uma sociedade (um “reino”) que funciona sob uma moral estranha, sendo, ao nosso olhar, uma sociedade amoral. De forma semelhante (mas não idêntica), Peixoto cria em Uma casa na escuridão um espaço, a dita “casa”, que representa um país a todo tempo referenciado, mas nunca nomeado, assim como os outros supostos países mencionados na obra. As relações entre as personagens nunca parecem se dar com base em um código social. As individualidades, ou melhor, a subjetividade de cada personagem é, assim como seus corpos, mutilada ao longo do enredo, o que dificulta também o estabelecimento de relações concretas. Todos convivem em um mesmo plano, numa mesma casa, mas suas semelhanças enquanto seres humanos desaparece diante da brutalidade dos “soldados”, que a todo tempo vêm e destroem todas as possibilidades de constituição de sujeitos, inclusive, como disse, pela mutilação.

Curiosamente, a presença dos soldados também remete à série “O reino” de Gonçalo. A relação entre os textos dos dois escritores se torna ainda mais curiosa se lembramos que não pode ter se dado pela leitura de um pelo outro, afinal o primeiro romance da tetralogia de Gonçalo, Um homem: Klaus Klump, foi lançado em 2003 e provavelmente escrito bem antes disso, dado o ritmo de lançamentos seguidos do autor. Na verdade, o que acontece, acredito eu, é simplesmente uma constante na ficção portuguesa desde os fins da ditadura salazarista, especialmente após da Revolução dos Cravos (1974): o retrato da autoridade sob suas diversas formas. Não se trata mais de uma contestação da autoridade, como nos romances que surgiram ainda nos anos 70, mas sim de uma construção da violência da autoridade, do exercício de seu poder, pura e simplesmente. Em Uma casa na escuridão, no caso, não se vê a intenção de dialogar diretamente com a história de Portugal sob o governo de Salazar ou de seu sucessor, Marcello Caetano. Há apenas a autoridade exercendo sua função sem qualquer impedimento ou julgamento, como Deus na doutrina católica. Os indivíduos apenas existem para se anular diante desse ente superior.

Assim, as personagens do romance de Peixoto, aos poucos, apodrecem diante de uma peste negra em meio aos soldados e os gatos (pretos?) que surgem cada vez mais. Esse apodrecimento se dá por manchas castanhas que aparecem na pele, inicialmente na do protagonista, depois na de todos ao seu redor, que fazem com que os membros superiores e inferiores necrosem. Ao mesmo tempo, sem qualquer razão aparente, soldados marcam presença na casa e se dão o direito de mutilar as personagens, mesmo antes do apodrecimento se iniciar. Sob a narração em primeira pessoa, que domina o romance, tendemos a ter a ideia de que o desaparecimento do amor no protagonista coincide com essa deterioração dos indivíduos, seja pela doença ou pela violência.

O amor também some por meio da mutilação em personagens como o príncipe de calicatri, cujo coração, no qual ficam todos seus sentimentos de todas as partes do mundo para as quais viajou, é retirado por um soldado. O mesmo acontece aos poucos com outras personagens que são mutiladas ou até mesmo morrem. Destaca-se aí a escrava miriam (sempre citada como “escrava miriam”), que não é mutilada fisicamente, mas é constantemente, diariamente estuprada por uma série de soldados sob o olhar de todos e, inclusive, a presença de cadáveres e pedaços arrancados de corpos em volta.

O amor, como se vê, sempre citado nos nomes dos capítulos ou nas epígrafes de cada um deles, sempre retirados dos salmos, parece aos poucos sumir diante de uma culpa. O Senhor presente nessas passagens bíblicas, apesar do evidente significado religioso, adquire formas distintas no restante do texto, na narração dos capítulos. Assim, em um mundo de trevas, sob nossa visão ocidental, de moral cristã, Deus parece se transformar em maldição, em culpa, de modo que o que resta de religião no romance de Peixoto é somente a culpa sem possibilidade de expiação. Não parece haver qualquer salvação para o sujeito em Uma casa na escuridão. Ele simplesmente deve se render ao poder maior, a esse poder divino dos soldados, para se ver destruído interior e exteriormente.

O gótico do romance de Peixoto parece surgir não pela aversão ao Bem, à dádiva religiosa, mas exatamente pelo terror inevitável, pelo terror como única possibilidade de vida. Sob essa violência intrínseca ao mundo do romance, só resta a melancolia. Em Uma casa na escuridão, a morte sob as brumas, a morte como indigente se confunde com o significado da vida e até mesmo do amor.