O húngaro Imre Kertész, laureado com o Nobel em 2002, é um dos principais autores do Holocausto. Ele esteve em Auschwitz por um único dia, sendo transferido em seguida para Buchenwald, mas a experiência foi central em sua vida e em sua escrita- tanto que considera o Holocausto o único tema a ser abordado, de uma maneira ou de outra.

Mas a literatura de Kertész não se limita a descrever os Campos de Concentração. Em O Fiasco o autor judeu-húngaro mostra a continuidade da opressão: ao contrário de outros escritores que estiveram sob o julgo nazista, ele não abandonou sua terra e sua língua pelo Ocidente, vivendo sob a opressão soviética.

A narrativa é construída em camadas. Primeiro temos ‘O Velho’, personagem sem qualquer outra denominação, que é um escritor judeu-húngaro que esteve em Auschwitz e que tem um livro sobre a experiência recusado pelo editor. Resolve, então, escrever um livro sobre um escritor judeu-húngaro que esteve em Auschwitz e que tem um livro a respeito recusado.

Esse escritor, chamado Köves- o mesmo nome do garoto de Sem Destino- voltou para sua terra natal e foi absorvido pelo comunismo. Foi mesmo integrado ao exército e forçado a escoltar prisioneiros. Não dura muito na tarefa, finge insanidade para de dispensado e poder dedicar-se à escrita. Ninguém, no entanto, quer saber mais a respeito dos horrores do Nazismo.

Horrores esses que, ao lermos o livro, temos a impressão de que não começaram e nem terminam onde supomos: a infância sob uma efígie patriarcal opressora que drena-lhe toda a felicidade, a adolescência nos campos de extermínio e de trabalho criados pelos alemães e, por fim, a opressão soviética formam uma linha de continuidade traumática, caracterizada pela impotência e fragilidade do indivíduo.

A história do livro apresenta um caráter elíptico, cheio de reminiscências e retrocessos. Do mesmo modo a escrita é propositalmente repetitiva, sendo que palavras, frases e as vezes até parágrafos inteiros são repetidos. Longe de tornar a leitura ‘travada’ ou de minar sua estética, isso dá força à obra, ecoando os sentimentos e idéias que seu conteúdo evoca.

O Fiasco me parece um dos livros menos valorizados de Kertész- o que é deveras injusto. Ele é parte essencial da trilogia que rendeu o Nobel ao escritor- composta por Sem Destino, O Fiasco e Kaddish para uma Criança não Nascida – e uma das obras mais interessantes daquilo que se convencionou chamar de ‘literatura de testemunho’.

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