O consumo excessivo de ficção especulativa pode causar esquizofrenia literária. Como se sabe, o distúrbio se revela numa tendência a substituir explicações tradicionais imediatas por causas que envolvam criaturas mágicas ou tecnologias do século XXIV. O leitor contaminado costuma estar preparado o tempo todo para que um personagem retire uma espada da pedra e se declare rei, ainda que a história se passe em pleno centro de São Paulo.
Empregando uma variante do teste de Rorschach, a disfunção pode ser detectada pelas respostas do paciente-leitor aos cartões que o analista coloca a sua frente. Temos aqui um exemplo, em letras de formatação padrão:
Denz Ay afirmara que os residentes da cidade alta haviam plantado evidências no passado […]1
Grosso modo, estaria liberado quem citasse conspirações políticas e corrupção policial. Por outro lado, seria suspeitíssimo aquele que, sem pestanejar, afirmasse: “Vejo um grupo de pessoas que foi para o passado plantar provas. Sim, definitivamente, viagem no tempo.”
A literatura, de todas as espécies, oferece muitas dessas oportunidades. Faça agora o teste o próprio leitor, analisando o trecho contido no seguinte cartão:
Não vejo sua mãe desde que ela foi com o Terra 5-0.2
Subscrevo seu atestado de sanidade literária caso tenha imaginado “Terra 5-0” (a primeira ideia é a que conta) como uma organização de missionários de propósitos ecológicos ou humanitários em geral3. Caso tenha pensado em aliens, trolls subterrâneos ou dimensões paralelas em que todos têm superpoderes, procure imediatamente um médico.
Por outros critérios, é de se notar que as pessoas sadias – que não têm gosto para a especulação – sentem-se desconfortáveis na presença de elementos fantásticos. Um bom exemplo pode ser encontrado nas respostas ao romance A fortaleza da solidão, de Jonathan Lethem. A opinião de cinco entre oito leitores, quando destilada, estaria assim resumida: “o livro é escrito magistralmente, mas por que raios há um anel mágico na história?” Ainda que o citado artefato interfira muito pouco no andamento das coisas, pesquisas apontam que resta sempre uma ansiedade de fundo, causada principalmente pela perspectiva de que a qualquer momento o protagonista ficará invisível e fugirá do Brooklin direto para Mordor.
No melhor estilo louco de palestra, me permitam concluir citando as propriedades filosóficas da água. Se você se pega lembrando com nostalgia as aulas de ciência da quarta série, em que o mundo era simples e era possível recitar com convicção os três estados matéria – sólido, líquido e gasoso –, você provavelmente está salvo. Por outro lado, se você se lembra com mais frequência do momento, mais tardio no currículo escolar, em que aprendemos que a água se expande quando resfriada além dos 4 °C, um fenômeno excepcional do qual decorre tanto a recomendação de não guardar garrafas cheias no congelador quanto o fato de que, mesmo nos períodos de glaciação mais severa, a vida na Terra pôde perseverar no fundo dos lagos e dos oceanos, sem o que, por sua vez, nenhum de nós estaria aqui hoje, então, sinto muito dizer, já é tarde demais.
Segue a bibliografia do mês.
Originais
Belly, Haddayr Copley-Woods (The Magazine of Fantasy and Science Fiction, 6.501 palavras) – Começa onde a maioria dos contos de fada deveria terminar: com a criança na barriga da bruxa. Por treze anos, pra ser exato. Logo se seguem relatos detalhados do trato digestivo de uma criatura dotada de resistência mágica, motivo pelo qual não se recomenda a leitura durante o almoço.
Deve existir em algum lugar uma explicação para a quantidade e variedade das aparições de bruxas na literatura atual. A mais óbvia certamente culparia J.K. Rowling. Mas outra opção seria admitir que ficou ultrapassada a ideia de atribuir um caráter maligno a qualquer velhinha introvertida com problemas ortopédicos, e por isso existe aí uma ótima oportunidade para perspectivas novas. São bruxas independentes, práticas, sagazes ou atormentadas. A perversidade das bruxas de Belly, por exemplo, volta-se sobretudo contra elas mesmas.
Para mais bruxaria exótica, veja também Witch, Beast, Saint: an Erotic Fairy Tale, de C. S. E. Cooney.
A Guide to the Fruits of Hawai’i, Alaya Dawn Johnson (The Magazine of Fantasy and Science Fiction, 9.156 palavras) – Outro caso de quebra dos modelos padrões, desta vez em relação aos vampiros. Na noveleta de Alaya Johnson, a protagonista trabalha como capataz numa reserva gourmet de seres humanos. Uma história que fala menos do desejo de força e juventude eterna e mais da importância de pequenas atitudes.
Para mais exemplos de por que sua mãe diria para não sair com mortos-vivos, leia também The Food in the Basement, de Laura Davy.
Sixty Years in the Women’s Province, Benjanun Sriduangkaew (GigaNotoSaurus, 9.234 palavras) – História, da juventude até a velhice, de uma mulher que habita um mundo alternativo, de onde às vezes abrem-se portais para Hong Kong. Nesse mundo nascem apenas mulheres, e a concepção se faz pela água de um rio. Boa oportunidade para conhecer o trabalho de Benjanun Sriduangkaew, uma escritora tailandesa que tem alcançado cada vez mais reconhecimento.
Republicações
Chambered Nautilus, Élisabeth Vonarburg (Strange Horizons, 11.590 palavras) – Outra obra de uma escritora fora do eixo americano, a franco-canadense Vonarburg, que escreve em francês. A protagonista desta noveleta é uma viajante compulsiva, que espera encontrar um lugar não apenas distinto, mas profundamente diferente. Detalhe: suas viagens acontecem por universos paralelos. Como muitas boas histórias de ficção científica, começa com uma premissa extremamente irreal, mas caminha na direção de uma conclusão universalmente humana. Inclui doppelgangers mutantes e gramáticas de outros mundos.
The Very Pulse of the Machine, Michael Swanwick (Galaxy’s Edge, 6.609 palavras) – Talvez você já tenha visto recentemente a história de uma astronauta, com problemas de autoconfiança, que sofre um acidente numa missão espacial e delira ao tentar voltar para casa. O conto de Swanwick pode não ter a beleza do filme de Cuarón, mas tem a audácia criativa característica do escritor, reconhecida com o Hugo de 1999. Como o início do conto pode ser um pouco difícil de decifrar, adianto uma dica: o enxofre é triboelétrico.
The Halfway House at the Heart of Darkness, William Browning Spencer (Clarkesworld, 5.582 palavras) – Neste conto de 1998, a tecnologia de realidade virtual alcançou o nível, tão temido quanto desejado, das simulações mais que perfeitas. Spencer imagina, por exemplo, um jogo chamado “Apes and Angels”, no qual o jogador começaria na lama da “Ilha da Libido” e evoluiria até o estado beatífico dos anjos. Uma visão convincente sobre o vício e o consumismo, que antecipa as obsessões do Farmville e de World of Warcraft, e faz outros relatos semelhantes mostrarem seus pixels estourados.
1. Me conquistou no primeiro parágrafo! We have a badass out here!
2. Fui contaminado! Pra mim foi muito óbvio que viajaram para o passado a fim de tentarem incriminar alguém (Minority Report tem algo que vai por essa linha) e que Terra 5-0 seria uma forma de identificar o planeta e a época de origem do personagem.
3. Vou ler e escrever sobre O Louco De Palestra (Vanessa Barbara, direitos reservados) só pra linkar na tua referência ao livro.
Quero ler tudo. Só senti falta das dicas de não ficção, que leio religiosamente na Berbadette.