Anteriormente em Verão Infinito…
549-638.
As coisas andam depressa.
É improvável que alguém que tenha chegado até aqui vá abandonar o livro em seguida.
Receio de desperdiçar o esforço?
Não.
Digamos que você tenha embarcado em Graça infinita e se sentido meio perdido nos primeiros instantes. Normal. O começo da viagem pode ser meio desagradável. Pode ser aterrador. Mas aí as paisagens começam a ficar conhecidas — não, todavia, de um jeito monótono. Os lugares que você vê pelas janelinhas não são previsíveis ou cansativos. Não têm relação com os cenários que você enxergou a vida toda. O que mudou? Você não está se sentindo tão desconfortável. Só isso. Você concordou em se deixar levar porque conseguiu calcular os riscos e enxergar o objetivo. Você não está mais assustado. Você começou a curtir a viagem. Você perdeu o medo. Você não está mais olhando apavorado ao redor, tentando adivinhar aonde diabos tudo isso vai levar. Você não tem mais vontade de saltar e sair correndo. É daqui para a última parada. E você intui mais ou menos qual vai ser a última parada. O que, acredite, é bom.
(Dizer que as paisagens não são óbvias não é o mesmo que dizer que são maravilhosas. Algumas são desoladoras. Estamos falando de Graça infinita.)
As conexões entre os personagens estão mais claras. As datas também. A intenção por trás do livro começa a ficar evidente. Você está fisgado, ou viciado. Os núcleos principais estão bem delineados. David Foster Wallace vai da Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool para a Academia de Tênis Enfield, e então de volta para a primeira. Você encara a coisa toda como se acompanhasse uma bolinha de tênis se movendo pela quadra.
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Don Gately desponta como um dos melhores personagens do romance. Não confio em você se você disser que não ama Don Gately e seu cavalinho de pau chamado (inspirado na doença da mãe, que bebia um bocado) Sir Hose.
Don Gately e suas dúvidas sobre o Ser Superior. Don Gately e sua dificuldade em manter a Casa Ennet funcionando. Don Gately e seus sentimentos por Joelle van Dyne. Mas há um bocado de coisas que — se ainda não passou da página 638 — você não sabe sobre Don Gately. Quando souber, e quando a trajetória de Don Gately for contraposta à de outro personagem ao longo das últimas páginas do livro, você vai gostar ainda mais dele. Don Gately funciona, em parte, como o epicentro da crítica social de Graça infinita.
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Seja como for, muita coisa acontece nessas quase cem páginas.
Anote este nome: Randy Lenz.
Lenz, interno da Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool, é um dos personagens secundários mais bem explorados do livro. Sua primeira aparição sugere uma figura que pouco tem a oferecer à trama. É um acessório, você pensa. Vai ser descrito em linhas gerais — outra curiosidade — e vai sumir depressa.
Engano seu.
Logo, sem aviso, a lente é aproximada para que o pior de Lenz (e é muito ruim, acredite) venha à tona. Randy Lenz encontra um jeito peculiar (e cruel) de enfrentar o confinamento e as frustrações. Sua atitude é responsável por uma das melhores cenas de Graça infinita — uma briga generalizada que envolve quebequenses vestidos com trajes havaianos e ex-viciados sonolentos. É uma espécie de ápice do núcleo II (da Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool). Você não quer que termine. O melhor: Don Gately é o herói.
Lenz também faz amizade com Bruce Green, que aproveita para contar sua história. E a história de Green é (digamos) surpreendente.
As coisas também estão movimentadas na Academia de Tênis Enfield.
Pemulis presencia uma cena inusitada, mas não de todo imprevista. Agora que conseguiu o flagrante, no entanto, o malandro tem uma poderosa arma de chantagem nas mãos.
Alguns parágrafos são dedicados a Mario Incandenza. É, de fato, uma das melhores partes do livro. Lamentando o fim do programa de rádio de Madame Psicose, Mario explica o que ele entende por autenticidade.
Num Arizona escaldante, o autocentrado Orin Incandenza prova que sua estupidez é (como a graça) infinita.
David Foster Wallace começa a lançar as bases para o desfecho. As consequências da briga serão esticadas até o fim. Na Academia de Tênis Enfield, o poder de Pemulis sobre os Incandenza — sobretudo Avril e Hal — vai lhe render uma saída para um problema grave.
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“É questão de certo interesse perceber que as artes populares dos EUA da virada do milênio tratam a anedonia e o vazio interno como coisas descoladas e cool. De repente são vestígios da glorificação romântica do Weltschmerz, que significa estar cansado do mundo, ou um tédio gigante. De repente é o fato de que quase todas as artes aqui são produzidas por gente mais velha cansada do mundo e sofisticada e aí consumida por pessoas mais jovens que não apenas consomem arte mas a examinam em busca de pistas de como ser chique, cool — e não esqueça que, para os jovens em geral, ser chique e cool é o mesmo que ser admirado, aceito e incluído e portanto assolitário. (…) Nós entramos numa puberdade espiritual em que nos ligamos ao fato de que o grande horror transcendente é a solidão, fora o enjaulamento em si próprio. Depois que chegamos a essa idade, nós agora daremos ou aceitaremos qualquer coisa, usaremos qualquer máscara para nos encaixar, ser parte-de, não estar Sós, nós os jovens. As artes dos EU são o nosso guia para a inclusão. Um modo-de-usar. Elas nos mostram como construir máscaras de tédio e de ironia cínica ainda jovens, quando o rosto é maleável o suficiente para assumir a forma daquilo que vier a usar. E aí ele se prende ao rosto, o cinismo cansado que nos salva do sentimentalismo brega e do simplismo não sofisticado. Sentimento é igual a simplismo neste continente.”
Ler Graça infinita sem ironia e com intenção real de compreender o livro não é cool. Mostrar tanto interesse por um romance — pior: norte-americano — não é cool. Todo mundo aqui foge, uns mais e outros menos, da “glorificação romântica do Weltschmerz”.
Não é cool dizer que você comprou Graça infinita porque a curiosidade era enorme. Não é cool confessar o medo, a adoração ou a alegria porque temos (finalmente) a versão traduzida. Não é cool fazer uma leitura coletiva. Não é cool levar isso a sério.
Idealizar o Verão Infinito — um projeto do Pips — requer muito mais coragem do que se pode supor em um primeiro momento. O que significa, hoje, iniciar uma leitura coletiva de um livro com fama de difícil, uma leitura coletiva que não usa a autoironia como escudo contra a insegurança? Uma leitura coletiva que não finge tédio e não aponta o que há de cínico no romance?
Por que muitos leitores minimizam o próprio prazer e a própria alegria que sentem com a literatura?
Até que ponto você é capaz de assumir aquilo de que gosta sem precisar disfarçar?
Li a parte do Lenz segurando minha cachorra e sussurrando : Tá tudo bem, tá tudo bem, rs
No meio das paranóias de pegar todas as referências, vencer o marasmo sádico da descrição do Eskhaton, anotar a cronologia, entender as sublinhas e analisar o quadro maior, Gately surge para me deixar mais calma; seu jeito de não questionar nada me incentiva a apenas ler e curtir o livro, sem alimentar grandes neuras de “Será que estou lendo esse trem direito”.
Mas acho o tamanho do livro e o hermetismo de algumas discussões são ferramentas fundamentais do DFW para discutir a própria noção de entretenimento e crítica, colocando o leitor numa situaçano de ironia genial e ridícula ao mesmo tempo
As páginas dessa semana foram as de leitura mais rápida. Gately é realmente um grande personagem e a cena do tumulto em frente à clínica – assim como os passeios noturnos de Lenz – é narrada de forma primorosa.
Impossível não sentir ternura por Mario, as passagens relativas a ele parecem revestidas de um tom mais afetuoso, contrastando com toda a tristeza e virulência com que são retratados os demais personagens, mesmo em seus momentos mais brandos.
São ótimas – e esclarecedoras – as passagens das respostas de Orin para a “entrevista” de Steeply.
ps: Bem legal a analogia da sucessão de núcleos da Casa Ennet para a ATE com a bolinha de tênis indo e voltando na quadra!
Meu maior problema para levar algumas passagens do livro a sério é uma suspeita íntima de que elas não foram feitas para serem levadas, no fim das contas. Embora haja algo de épico no tom do livro, muita coisa ali me parece mais Trapalhões do que qualquer outra coisa. Não é Star Wars, é Os trapalhões na Guerra dos Planetas. Não é Indiana Jones, é As Minas do Rei Salomão…
A cena da briga na entrada da clínica foi, até onde me lembro, a única cena de ação já escrita por Wallace que eu já li, e é magistral, o que me faz crer que a ideia dele não era mesmo o ´épico, e sim o pastiche. Por mais que haja uma trama de espionagem (forças oficiais e extraoficiais em disputa atrás de um poderoso McGuffin) e até com toques de horror no substrato (um entretenimento mortal, uma mulher vendada que esconde uma misteriosa deformidade, os passeios homicidas de Lenz), para mim parece claro que a coisa toda é constantemente sabotada por Wallace com uma comédia extremamente pastelão: ah, vá, uma perigosa organização terrorista e assassina composta de caras em cadeira de rodas? Um agente disfarçado como a mulher menos convincente da história e que ainda assim recebe cantadas constrangedoras de Orin? Isso é puro Didi Mocó.
Bem interessante a discussão, CAM. Acho que dá muito pano pra manga. Certamente tem um tom (mais do que isso, até) humorístico-pastelão em Graça infinita (e falhei em não ter apontado isso na resenha quilométrica que saiu no Livros abertos). Eu consigo levar a sério, digamos, talvez mais do que deveria, porque curto bastante o humor na literatura. Sempre gostei do tom de comédia em Beckett, Vila-Matas (que, tudo bem, é um tantinho diferente), em Pynchon, no Portnoy do Philip Roth. Sei, no entanto, que David Foster Wallace cruza uma linha que esses não cruzaram. O disfarce horrendo do Steeply, os assassinos cadeirantes, tudo aponta para um exagero cretino, e todavia eu enxergo algo muito genuíno por trás das piadas. Bem que alguém podia explorar esse tema. Agora fiquei curiosa pra ler um ensaio sobre isso.
É uma questão interessante essa do humor. E o quanto interfere no modo como o livro é encarado depende da percepção de cada um.
Até me divirto com o que há de “tosqueira” (como no fato de Orin se encantar com Steeply travestido ou seus métodos de conquista, que me fizeram lembrar, vejam só, o “playbook” de Barney Stinson, personagem da série How I Met Your Mother). No entanto, todo o desencanto, vazio e certa morbidez que circundam o livro e os personagens destacam-se na impressão que tenho do livro.
Passagens como a convulsão de Tony Krause no trem por abstinência (ou overdose?) de xarope de codeína; os relatos dos centros de reabilitação (a mãe viciada que não desgruda do cadáver do filho deformado é de dar um frio na espinha) e mesmo circunstâncias patéticas como a morte dos pais de Bruce Green são revestidas de uma escuridão que me fala mais alto do que qualquer traço humorístico do romance.
Baita texto!
Eu iria até mais além na questão da leitura enquanto jogo de tênis. Assim como eu já tive uma fase do livro de me sentir preso a uma arma de entretenimento muito da doida; e assim como eu passei pela fase de me sentir numa reunião de Dependentes Anônimos com longos relatos em que eu me comparava ou identificava pra me recuperar também; e agora a sensação é de ser adversário de Hal na quadra 6. Como já aprendeu a repórter Steeply, Hal tortura os oponentes, atirando a bola pra um lado e pra outro e assim controla a mente deles. E mais, para entender em que momento o ponto foi conquistado, não basta olhar pra última raquetada. O golpe fatal foi lá atrás.
Bom, sobre o que é ou não cool, confesso que não tenho certeza, nem sei se entendi muito bem. Talvez isso seja um mau sinal pro meu lado.
A leitura como vaivém de bola de tênis é uma baita imagem. Tenho percebido a Casa Ennet e a academia de tênis justamente como lados opostos de uma mesma quadra, por assim dizer. Pat Montesian aconselha a ação como anterior à ideia (o viciado deve se engajar numa série de atividades que vão “reprogramar” a mente adoecida, também via overdose de frases de auto-ajuda); o idealista alemão Schtitt, pelo contrário, aconselha a ideia como anterior à ação (esqueçam os objetos, o calor, o frio, enfim, o mundo exterior – o jogo bem jogado decorre de um processo de abstração, um cálculo solipsista). O esforço de Hal para se aprimorar como tenista (no que, até aqui, ele nem parece tão interessado) é pareado com Gately faxinando merda e sêmen, enquanto Marathe questiona o quanto há de livre escolha nessa sociedade orientada para a livre escolha. Em Graça Infinita, parece que toda escolha envolve um treinamento doloroso de autoengano, e os personagens mais atucanados parecem ser os mais autoconscientes. O entretenimento, nesse sentido, talvez seja uma entrega a um estado passivo, vegetativo, sem a dor da escolha.
Dado que o Verão Infinito já avançou, não sei se serei respondido pela autora. Mas bateu uma curiosidade agora: o início deste texto foi baseado no conto “Para sempre em cima”, do próprio DFW?
Não foi, Rômulo. Nem lembro do conto pelo título. 🙂
Tá no BECHH (Breves Entrevistas Com Homens Hediondos). Este aqui: http://www.companhiadasletras.com.br/trecho.php?codigo=11215
Eu ando questionando se Hal efetivamente é o protagonista do livro ou se isso é mais uma sacanagem do DFW conosco. Dom Gately já me parece até mais central pro espírito do livro do que o Hal – embora talvez não para a trama.
Sobre o pastelão e a tática do absurdo: o Borges tinha uma tese genial de que uma personagem, para ser verossímil, deveria ser econômica em suas características fantásticas: tipo, o cara pode ser invisível, e acreditaremos, mas se for invisível e também souber voar, não vamos levar a sério. Acho que podemos adaptar isso pro Graça Infinita e ver que escritor genial foi o DFW. Ele não usa elementos fantásticos, mas abusa de cenas absolutamente surreais, de personagens que estão no extremo da estranheza, e nós aceitamos isso. Aceitamos porque é simplesmente bom pra cacete.
Ótimas observações, Camila.
Alexandre, já leu a resenha de DFW sobre a biografia de Borges? Há considerações interessantes sobre a obra do argentino. Aqui: http://www.nytimes.com/2004/11/07/books/review/07WALLACE.html?pagewanted=all&_r=0
Curioso como, à medida que o livro vai seguindo, a gente encaixa algumas peças. Dentro do enredo de Graça Infinita e, sobretudo, das opiniões e discurso de DFW. Cada personagem serve a um propósito. Mario Incandenza, me parece – com sua infinita inocência e comovente incapacidade de dissimular e detectar mentiras- , reforça a opinião negativa do autor a respeito da ironia nas arte norte-americanas. É das melhores personagens do livro.
Bem como o núcleo político – especialmente nos diálogos entre Marathe/Steeply – é a arena em que Foster Wallace critica mais explicitamente a necessidade/vício de/em entretenimento do povo EU (como ele diz). Há trechos da conversa entre os agentes que são geniais. Demonstram a melhor qualidade de DFW: o agudíssimo poder de observação. O cara era foda.