Anteriormente em Verão Infinito…

Verão Infinito #0

Verão Infinito #1

Verão Infinito #2

Verão Infinito #3

Verão Infinito #4

Verão Infinito #5

Verão Infinito #6

549-638.

As coisas andam depressa.

É improvável que alguém que tenha chegado até aqui vá abandonar o livro em seguida.

Receio de desperdiçar o esforço?

Não.

Digamos que você tenha embarcado em Graça infinita e se sentido meio perdido nos primeiros instantes. Normal. O começo da viagem pode ser meio desagradável. Pode ser aterrador. Mas aí as paisagens começam a ficar conhecidas — não, todavia, de um jeito monótono. Os lugares que você vê pelas janelinhas não são previsíveis ou cansativos. Não têm relação com os cenários que você enxergou a vida toda. O que mudou? Você não está se sentindo tão desconfortável. Só isso. Você concordou em se deixar levar porque conseguiu calcular os riscos e enxergar o objetivo. Você não está mais assustado. Você começou a curtir a viagem. Você perdeu o medo. Você não está mais olhando apavorado ao redor, tentando adivinhar aonde diabos tudo isso vai levar. Você não tem mais vontade de saltar e sair correndo. É daqui para a última parada. E você intui mais ou menos qual vai ser a última parada. O que, acredite, é bom.

(Dizer que as paisagens não são óbvias não é o mesmo que dizer que são maravilhosas. Algumas são desoladoras. Estamos falando de Graça infinita.)

As conexões entre os personagens estão mais claras. As datas também. A intenção por trás do livro começa a ficar evidente. Você está fisgado, ou viciado. Os núcleos principais estão bem delineados. David Foster Wallace vai da Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool para a Academia de Tênis Enfield, e então de volta para a primeira. Você encara a coisa toda como se acompanhasse uma bolinha de tênis se movendo pela quadra.

*

Don Gately desponta como um dos melhores personagens do romance. Não confio em você se você disser que não ama Don Gately e seu cavalinho de pau chamado (inspirado na doença da mãe, que bebia um bocado) Sir Hose.

Don Gately e suas dúvidas sobre o Ser Superior. Don Gately e sua dificuldade em manter a Casa Ennet funcionando. Don Gately e seus sentimentos por Joelle van Dyne. Mas há um bocado de coisas que — se ainda não passou da página 638 — você não sabe sobre Don Gately. Quando souber, e quando a trajetória de Don Gately for contraposta à de outro personagem ao longo das últimas páginas do livro, você vai gostar ainda mais dele. Don Gately funciona, em parte, como o epicentro da crítica social de Graça infinita.

*

Seja como for, muita coisa acontece nessas quase cem páginas.

Anote este nome: Randy Lenz.

Lenz, interno da Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool, é um dos personagens secundários mais bem explorados do livro. Sua primeira aparição sugere uma figura que pouco tem a oferecer à trama. É um acessório, você pensa. Vai ser descrito em linhas gerais — outra curiosidade — e vai sumir depressa.

Engano seu.

Logo, sem aviso, a lente é aproximada para que o pior de Lenz (e é muito ruim, acredite) venha à tona. Randy Lenz encontra um jeito peculiar (e cruel) de enfrentar o confinamento e as frustrações. Sua atitude é responsável por uma das melhores cenas de Graça infinita — uma briga generalizada que envolve quebequenses vestidos com trajes havaianos e ex-viciados sonolentos. É uma espécie de ápice do núcleo II (da Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool). Você não quer que termine. O melhor: Don Gately é o herói.

Lenz também faz amizade com Bruce Green, que aproveita para contar sua história. E a história de Green é (digamos) surpreendente.

As coisas também estão movimentadas na Academia de Tênis Enfield.

Pemulis presencia uma cena inusitada, mas não de todo imprevista. Agora que conseguiu o flagrante, no entanto, o malandro tem uma poderosa arma de chantagem nas mãos.

Alguns parágrafos são dedicados a Mario Incandenza. É, de fato, uma das melhores partes do livro. Lamentando o fim do programa de rádio de Madame Psicose, Mario explica o que ele entende por autenticidade.

Num Arizona escaldante, o autocentrado Orin Incandenza prova que sua estupidez é (como a graça) infinita.

David Foster Wallace começa a lançar as bases para o desfecho. As consequências da briga serão esticadas até o fim. Na Academia de Tênis Enfield, o poder de Pemulis sobre os Incandenza — sobretudo Avril e Hal — vai lhe render uma saída para um problema grave.

*

“É questão de certo interesse perceber que as artes populares dos EUA da virada do milênio tratam a anedonia e o vazio interno como coisas descoladas e cool. De repente são vestígios da glorificação romântica do Weltschmerz, que significa estar cansado do mundo, ou um tédio gigante. De repente é o fato de que quase todas as artes aqui são produzidas por gente mais velha cansada do mundo e sofisticada e aí consumida por pessoas mais jovens que não apenas consomem arte mas a examinam em busca de pistas de como ser chique, cool — e não esqueça que, para os jovens em geral, ser chique e cool é o mesmo que ser admirado, aceito e incluído e portanto assolitário. (…) Nós entramos numa puberdade espiritual em que nos ligamos ao fato de que o grande horror transcendente é a solidão, fora o enjaulamento em si próprio. Depois que chegamos a essa idade, nós agora daremos ou aceitaremos qualquer coisa, usaremos qualquer máscara para nos encaixar, ser parte-de, não estar Sós, nós os jovens. As artes dos EU são o nosso guia para a inclusão. Um modo-de-usar. Elas nos mostram como construir máscaras de tédio e de ironia cínica ainda jovens, quando o rosto é maleável o suficiente para assumir a forma daquilo que vier a usar. E aí ele se prende ao rosto, o cinismo cansado que nos salva do sentimentalismo brega e do simplismo não sofisticado. Sentimento é igual a simplismo neste continente.”

 

Ler Graça infinita sem ironia e com intenção real de compreender o livro não é cool. Mostrar tanto interesse por um romance — pior: norte-americano — não é cool. Todo mundo aqui foge, uns mais e outros menos, da “glorificação romântica do Weltschmerz”.

Não é cool dizer que você comprou Graça infinita porque a curiosidade era enorme. Não é cool confessar o medo, a adoração ou a alegria porque temos (finalmente) a versão traduzida. Não é cool fazer uma leitura coletiva. Não é cool levar isso a sério.

Idealizar o Verão Infinito — um projeto do Pips — requer muito mais coragem do que se pode supor em um primeiro momento. O que significa, hoje, iniciar uma leitura coletiva de um livro com fama de difícil, uma leitura coletiva que não usa a autoironia como escudo contra a insegurança? Uma leitura coletiva que não finge tédio e não aponta o que há de cínico no romance?

Por que muitos leitores minimizam o próprio prazer e a própria alegria que sentem com a literatura?

Até que ponto você é capaz de assumir aquilo de que gosta sem precisar disfarçar?