A pergunta que intitulará minhas colaborações mensais ao Meia Palavra não veio do além. Conhecer novas e surpreendentes histórias costuma fazer parte do que esperamos ao ler um romance ou ao assistir a um filme. Por que raios alguém vai ler 300, 400 páginas de um livro, se ele já sabe que a mocinha dá uma lição no cafajeste e finalmente resolve dar uma chance ao moço tímido? Alguns já têm uma resposta-curinga para esses casos: Ah, o livro é sempre melhor do que o filme. Nem sempre, amigos. Há filmes que conseguem ser excelentes justamente porque cortaram muitas das baboseiras que os autores enfiaram no texto.

Por que você resolveu falar desses livros que viraram filmes que todos já viram, então? Por duas razões. A primeira consiste em algo como “dar maior atenção a tantos livros que todos julgam ter lido”. Não para comparar propriamente qual versão é a melhor ou para dizer se a adaptação é fiel ou não, mas, sim, para dar um destaque maior, um olhar mais aprofundado (ou que assim pretende ser), à narrativa original. Para que os textos não tenham tanto esse caráter comparativo, falarei sobre obras que considero igualmente boas em ambas as mídias, em ambos os suportes.

A segunda razão é simples: poder falar do livro sem ter medo do famoso spoiler; não deixar de falar sobre um aspecto interessante da trama apenas porque poderia ser uma boa surpresa para o leitor. Portanto, é legal pelo menos ter visto o filme.

1.
Em 1998, a Companhia das Letras lançou a tradução do romance Dinheiro Queimado, de Ricardo Piglia. Dois anos depois, uma co-produção entre Argentina, Uruguai, França e Espanha, dirigida por Marcelo Piñeyro, teve sua estreia nos cinemas argentinos. O filme se chamava Plata Quemada, nome que foi mantido no circuito brasileiro. Se você costuma escolher livros porque já ouviu falar bem do autor, sem necessariamente ler orelhas e quarta capa, poderia não perceber a relação entre filme e livro quando do começo da leitura. Isso (I) porque o livro foi lançado antes do filme – ou seja, não havia um “selo” informando que ele inspirou a película – e (2) porque os títulos são diferentes – um no original, outro traduzido. Ao lançarem o filme no Brasil, algumas críticas o compararam à história de Bonnie e Clyde. Estes eram um casal de namorados que chefiavam uma quadrilha de assaltantes, famosa no começo dos anos 30. Bonnie foi uma das poucas mulheres que se tornaram “inimigas públicas” dos Estados Unidos, expressão que denominava alguns sujeitos simpáticos como o gângster Al Capone. Clyde e ela foram bem-sucedidos em seus crimes até que, no dia 23 de maio de 1934, foram perseguidos, encurralados e metralhados em seu carro de fuga. Dinheiro Queimado faz jus à comparação, com pequenas diferenças. A história se passa na Argentina e no Uruguai, 30 anos depois da versão estadunidense, os assaltantes são encurralados em um apartamento (não num carro) e os protagonistas são um casal homossexual. Não se difere no detalhe principal: a inevitabilidade do desfecho. Não bastasse a alusão ao casal norte-americano, a trama não foge de sua base em fatos reais.

2.
Os gêmeos: assim eles são chamados. Quer dizer que os dois caras, além de serem um casal, são irmãos? Não. Eles só eram chamados assim. No filme, não se questiona muito a denominação: ainda que os atores Leonardo Sbaraglia e Eduardo Noriega (que interpretam, respectivamente, El Nene e Ángel) não tenham rostos parecidos, ambos têm alturas semelhantes e são morenos. Dá para interpretar a lógica do filme à luz daquilo que se costuma dizer dos casais com, digamos, maior comunhão de vida: com gostos e modos de se vestir análogos, tornam-se um o reflexo do outro e, com isso, se acostumam a ser confundidos com irmãos.

No romance, porém, a versão difere:

São chamados de gêmeos porque são inseparáveis. Mas não são irmãos, nem são parecidos. Difícil inclusive encontrar dois sujeitos tão diferentes. Têm em comum o jeito de olhar, os olhos claros, calmos, com uma imobilidade perdida no olhar amedrontado. Dorda é gordo, tranqüilo, com uma cara rubicunda e sorriso fácil. Brignone é magro, ágil, leve, tem o cabelo preto e a pele muito branca como se tivesse passado na prisão mais tempo do que realmente passou. (p. 11)

Simples, não? Inseparáveis.

Diversos são os nomes que são atribuídos aos protagonistas, alternativas às quais o autor recorre no decorrer do romance: aquele que no filme é chamado de El Nene, no livro é chamado de Nene ou Brignone; Ángel, por sua vez, tem o apelido de Gaúcho Louro e Dorda, com algumas variações na combinação dos termos. Ah, se a complexidade dos dois se restringisse à mudança constante dos nomes… Mas falaremos disso mais adiante.

3.
A trama, resumidamente, trata do último assalto de ambos. Numa operação em conjunto com a polícia argentina, roubam milhões de pesos, que representam milhares de dólares, e fogem sem fazer as divisões acertadas anteriormente. Os tiras têm, então, tripla motivação para persegui-los: para exercerem a função que a sociedade deles espera; para vingarem a morte desnecessária de policiais e a traição quanto à divisão da grana; e para silenciarem os bandidos que, presos, poderiam fazer menção aos dois motivos anteriores. E se já sabemos que muitos crimes não são solucionados por causa da ligação entre crime organizado e os setores corruptos da polícia, podemos desconfiar do poder de tais contatos nessa caçada aos traidores. E eles são bestas por acaso? Não exatamente. Gananciosos, então? Não somente. Lógico que entre dar aos tiras metade dos 7.203.960 pesos e dividir a grana entre quatro pessoas apenas, a segunda opção salta aos olhos. Mas não é só isso. Eles também não gostam de tiras, de meganhas, de samangos. Isso fica bem claro quando eles conseguem roubar o carro forte:

[…] Tampouco viu quando o Gaúcho de cara tapada com a meia liquidou o policial com um tiro na nuca.
Tinha-o matado, o Gaúcho Dorda, porque lhe deu na telha, não porque o policial significasse uma ameaça. Tinha-o matado porque odiava a polícia mais do que qualquer outra coisa no mundo e pensava de um modo irracional que todo policial que ele matasse não seria substituído. “Menos um”, era o lema do Gaúcho, como se fosse diminuindo a tropa de um exército inimigo, cujas forças não podiam ser renovadas. Se matassem policiais o tempo todo, rapidinho, sem repugnância, como quem caça pardais, os merdas com alma de tira (que nascem com alma de tira, de escrotos) iam pensar duas vezes antes de se deixar levar por sua vocação de carrascos, iam ter medo de virar presunto e aí então (concluía) cada dia a justa ia ter menos gente. Pensava assim, mas de um modo mais confuso e mais lírico, como num sonho em que matava os tiras num descampado com uma escopeta; era nessa linha que o Gaúcho Louro imaginava sua guerra pessoal contra os samangos. (p. 31)

4.
Enquanto fogem (junto com Malito e Corvo Mereles), um cronista policial, desses que há em qualquer jornaleco, põe uma folha em sua máquina de escrever. Não marquei a página, nem reli as anteriores para confirmar ou não a teoria que criei, mas creio que a partir desse momento a narrativa adquire um caráter mais jornalístico.

Não que haja uma mudança brusca de estilo. Percebe-se, porém, que há um maior cuidado em apontar a origem das informações que são passadas – tal qual um jornalista indicando suas fontes, sejam estas confiáveis ou não. Assumindo que você não tenha ouvido a comparação com Bonnie e Clyde – que não sei se foi trazida à tona quando da publicação do livro –, nem tenha lido quarta capa, orelhas e epílogo, é este o momento em que começará a desconfiar que o objeto de leitura não narra uma trama fictícia.

A adaptação cinematográfica, que vi há alguns anos, deixa claro em algum momento que a história é “baseada em fatos reais”. Mas as cenas que se sucedem, tão boas quanto às de bons filmes policiais e de ação, aos poucos nos fazem esquecer dessa origem, nos acomodando naquela zona de suspensão da descrença em que costumamos ficar ao assistirmos a filmes do gênero. No cinema não temos a dimensão da realidade de tudo aquilo.

Com tais intervenções “jornalísticas” no texto, Ricardo Piglia, ao mesmo tempo em que busca apontar as fontes da investigação que lhe custou alguns anos, não nos permite que nos dispersemos em eventuais arroubos de lirismo e nos esqueçamos de que tudo aquilo fez parte da crônica policial duma época. Não conseguiu explicar a contento o porquê desta história em especial ter adquirido tanta importância em seu imaginário, mas sabia que possibilitar ao leitor um esquecimento não estava entre seus objetivos. Eternizou a história ao escrevê-la, dando-lhe moldes de lenda.

Mergulhamos dentro da cabeça dos protagonistas com máscaras de oxigênio muito parecidas com as que nos são dadas pelos narradores oniscientes. Travamos contato com o passado dos protagonistas e com seus diálogos no apartamento em foram encurralados como se estivéssemos lendo ficção, ilusão quebrada quando Piglia intercala citações que referenciam as fontes de tudo que descreveu.

Sabemos mais sobre a vida de Nene pelo que ele confessa à taxi-girl de Montevidéu, que prestou depoimento à polícia e denunciou o esconderijo deles; desvelamos alguns pensamentos do Gaúcho pelas declarações que fez ao psiquiatra da prisão, que inundam belamente o último capítulo; podemos acompanhar a conversa dos amantes enquanto atiravam na polícia pela presença de escutas no apartamento e pelas confusas transcrições do radiotelegrafista (sim, nem eu, nem Piglia entendemos a razão dos tiras terem instalado escutas no apartamento e esquecido de levar a munição dos bandidos).

5.
O fascínio que os personagens, tão próximos, e a violência, tão crua, exercem sobre o leitor é posto à prova numa passagem que, se não constitui o clímax do romance, ao menos deu título a ele. Brignone e Dorca resolvem dar fim à grana da qual não poderão usufruir. A reação do povo vem a seguir e continua para além do parágrafo que aqui transcrevo:

Se o dinheiro é a única coisa que justificava as mortes e se fizeram o que fizeram por dinheiro e agora o queimam, isso quer dizer que eles não têm moral, nem motivações, que agem e matam gratuitamente, pelo gosto do mal, por pura maldade, são assassinos natos, criminosos insensíveis, desumanos. Indignados, os cidadãos que observam a cena davam gritos de horror e de ódio, como num conciliábulo de bruxos da Idade Média (segundo os jornais), não podiam suportar que diante de seus olhos se queimassem cerca de quinhentos mil dólares numa operação que paralisou de horror a cidade e o país e que durou exatamente quinze intermináveis minutos, que é o tempo que se leva para se queimar essa quantidade astronômica de dinheiro, essas notas que por motivos alheios à vontade das autoridades foram destruídas sobre uma placa que no Uruguai se chama “patona” e que é usada para remover a brasa nas grelhas das churrasqueiras. Numa folha de lata “patona” foram queimando o dinheiro e os policiais ficaram imóveis, estupefatos, porque o que se podia fazer com criminosos capazes de tamanho despropósito. As pessoas indignadas se lembraram na mesma hora dos carentes, dos pobres, dos habitantes do campo uruguaio que vivem em condições precárias e das crianças órfãs para quem aquele dinheiro teria garantido um futuro.

Se havia entre o povo, e devia ter quem se sentisse dessa maneira, alguém tão seduzido quanto os leitores do livro argentino pela trama dos gêmeos, a queima do dinheiro serviu como um estalar de dedos de hipnotizador, um ato que provoca um retorno brusco à realidade. Diversas pessoas invejando um montante que não poderiam conceber em suas mentes. Dezenas de policiais que perdiam a vida, ou viam colegas mortos e empilhados em frente ao prédio cercado, tudo por um mísero salário. Uma multidão que se enfurece contra aqueles poucos que não querem deixar nada para trás e que os lincharia se houvesse oportunidade. O dinheiro já não era símbolo, valia mais do que muitos.

6.
Chegando ao final do livro, não tem para onde correr: eles vão morrer. Eles têm comida, têm cocaína para ficarem “ligados”, têm armas e munição, mas os outros são muitos e não há chance de fuga. O primeiro dos três (Malito não estava no esconderijo quando os outros foram encurralados, e o filme apresenta uma possibilidade sobre a qual Ricardo Piglia prefere não palpitar no romance) a perder a vida é o Corvo:

Mereles se levantou para silenciar o fogo do atirador postado em frente, mas antes que conseguisse disparar recebeu uma rajada que o arremessou para o living. Entrara na cozinha para procurar um ângulo do tiro e morreu sem se dar conta, como se o gesto de ir para a luz da janela o tivesse tirado do mundo.

Restam poucas páginas: poucas e boas. Excelentes, até. Piglia deixa para o final alguns dos melhores momentos de sua prosa – parágrafos inteiros de prosa poético-jornalística (se isso existir) que deixarei para o leitor descobrir com o livro em mãos.

Depois que Nene é atingido e deixa o taciturno Gaúcho Louro sozinho, depois que morre o único homem que tinha gostado dele e sempre o defendera e o tratara como uma pessoa, melhor do que a um irmão, como a uma mulher o tratara o Nene Brignone, que o entendia quando ele não podia falar e dizia sempre, o Nene, o que o Gaúcho sentia sem poder expressar como se lesse seu pensamento, depois de sua morte, descrita poeticamente, não resta muito a Dorda, além se entrincheirar atrás do corpo do namorado e gritar Venham, seus filhos da puta, vamos ver se têm coragem…

O narrador (se durante o texto me referi a Piglia quando devia ter me referido ao narrador, peço desculpas: não sei qual é o protocolo em obras que se aproximam do jornalismo literário) alterna momentos de lirismo concentrado com a violência hardcore de seus personagens, sem julgá-los. Pluridimensionalidade que chega a estranhar aos que estão acostumados à maneira unidimensional, coadjuvante, frágil e/ou politicamente correta, utilizada para retratar homossexuais em telenovelas e filmes de grande público. Dorda pensa:

Iria levando com ele todos os meganhas que pudesse, isso tinham jurado, sem se dizer, o Nene Brignone e o Gaúcho Louro. Num canto haviam feito as marquinhas, com o canivete, no marco da porta, cada filho da puta que tombava, quantos seriam, ele tinha dificuldade para conta, uns dez ou doze. Se tivesse uma bomba, se tivesse dinamite, amarrava na cintura e se jogava na rua, onde estavam todos os tiras esperando para vê-lo morrer. Que explodisse junto com eles.

Se você viu o filme, gostou, leu este texto e se interessou pelo livro (quantas condições, hein?), posso assegurar que a chance de arrependimento com a leitura é inexistente. Nula. Zero. Corre atrás dum exemplar, na livraria ou na biblioteca mais próxima.