Pela primeira vez em nosso clube de leitura saímos do planeta1. Já estava na hora, não?
Se com a obra de China Miéville cogitamos estar lendo uma narrativa com seres alienígenas – afinal, os poderes da Brecha eram originários de outro planeta? –, dessa vez nos identificamos com o alien Genly Ai, um terráqueo em missão extraplanetária. Da mesma forma que ele estranha Inverno, apesar de ter estudado muito a respeito do lugar antes da viagem, os habitantes de lá não o entendem muito bem – nós seríamos aberrações (ou “Pervertidos”) em Gethen.
Há uma fragilidade nele. É todo desprotegido, exposto, vulnerável, inclusive seu órgão sexual, que tem de carregar sempre do lado de fora do corpo; (…) (p. 220)
Na semana passada, deixamos nossos heróis – Ai e Harth – em uma longa jornada, iniciada pouco após o resgate macgyveriano daquele com a ajuda dos poderes deste e de uma injeção de adrenalina, ops, do dothe. Se antes a narrativa se alternava entre os relatórios de Ai e as lendas e histórias de Gethen, ela agora passa a visivelmente se dividir entre os dois protagonistas: o relatório de um e o diário do outro.
Ai me pergunta, dentro de seu saco de dormir: – O que está escrevendo, Harth?
– Um diário. (p. 215)
O lado enfadonho e decepcionante da longa travessia (sem garantias de sucesso) pelo deserto de gelo é compensado por tudo em que eles pensam e conversam a respeito, enquanto tentam se esquecer da precariedade da situação. Vão de assuntos mais gerais…
Ai diz que teorias semelhantes foram apresentadas por estudiosos terráqueos para explicar o recuo, ainda incompleto, de sua última Era Glacial. Tais Teorias permanecem, em grande medida, irrefutáveis e impossíveis de provar; ninguém sabe ao certo por que o gelo vai e vem. A Neve da Ignorância permanece intocada.
… aos mais específicos.
O que é o amor pelo seu país? É o ódio pelo seu não-país? (p. 206)
O principal tema, no entanto, parece ser o da dualidade: eu e o outro; homem e mulher; homem de sexo permanente e homem/mulher; yin e yang. A autora, por meio de seus personagens, aborda todos os assuntos com propriedade – aqui e ali o olhar contemporâneo pede algumas mudanças, mas não se deve negar que a autora pensou tudo em detalhes2. Comunicação e empatia unem dois personagens complexos, cujas nuanças acompanhamos em dezenas de páginas, e isso apenas fortalece os discursos que proferem. Isso é lindo de se ver.
Luz é a mão esquerda da escuridão
e escuridão, a mão direita da luz.
dois são um, vida e morte, unidas
como amantes no kemmer,
como mãos entrelaçadas,
como o fim e a jornada.
(p. 226)
Por fim, os dois principais acontecimentos do fim do livro já tinham sido apontados anteriormente. A aliança com os Ekumen fora prevista pelos Videntes, assim como se podia prever a morte de Estraven pelo uso do verbo no passado no trecho da p. 203 “era muito metódico com relação ao diário”. Mais fortes que isso, creio, são dois momentos: aquele em que Ai diz não servir ao Ekumen, mas à Humanidade (geral); e o finzinho, quando ele vai à família de Harth a fim de contar toda a sua história.
Ursula K. Le Guin provou ser o maior acerto – até o momento – em nosso clube de leitura. O próximo a ser lido terá a dura tarefa de, inevitavelmente, ser comparado a uma obra notável. Espero que tenhamos sorte.