A escritora alemã Helène Hegemann tomou de assalto o palco literário em 2010, tendo à época apenas 17 anos, por conta de dois motivos: 1) o lançamento do romance Axolotl roadkill (Axolotle atropelado, em português), que em poucas semanas após a publicação já contava três edições; e 2) as acusações de plágio que foram atribuídas ao livro, as quais mobilizaram momentoso debate sobre plágio, apropriação e inspiração na contemporaneidade.

Inicio o texto desse modo para poder dizer de pronto que o motivo 2 gerou repercussão tamanha que o clássico efeito cascata ‘polêmica > divulgação’ alcançou patamares tão acachapantes que o motivo 1 acabou como que encoberto por sua fumaça. Isto é, falou-se tanto sobre a controvérsia do plágio que acabou por se tomar como auto-evidente o valor da obra, ou então como algo muito menos suculento para manchetes, ganhando o livro em si atenção diminuta (em termos relativos).

O que essa resenha quer fazer é explorar um pouco as entranhas do romance propriamente dito, colocando como que entre parênteses a questão do plágio, por razões que poderíamos chamar de “metodológicas”. Correndo o risco de sermos chamados de inocentes, aceitamos o ônus de fazê-lo, limitando-nos a indicar em nota de rodapé alguns textos que podem servir ao leitor que quiser adentrar em tais meandros.[1]

De um modo muito básico, Axolotl roadkill pode ser descrito como um romance em primeira pessoa, espécie de diário, que narra episódios e impressões da vida de Mifti, uma adolescente de 16 anos que perdeu a mãe, se encontra no seio de uma família muito disfuncional e vive num submundo de drogas, sexo e clubs techno. Como se trata de uma narrativa pouco linear e muito sujeita às oscilações próprias da percepção da protagonista, não se sabe ao certo quanto tempo se passa na trama, e isto é, aliás, um dos aspectos a que os personagens costumam chamar a atenção, sobretudo quando descrevem suas vidas como “uma pilha de lixo colada sobre rotinas diárias não-estruturadas” (pos. 114-120).

Nesses termos, portanto, a narrativa está ancorada na desancoragem; numa crônica falta de sentido, a qual constitui no livro um arco descendente apesar da aparência de platitude absoluta. Seguindo o agitado cotidiano noturno de Mifti percebe-se pouco à pouco que antes de uma vida badalada, o que há é um estagnado lufa-lufa cujos altos e baixos se perspectivam tão rapidamente que ganham aspecto linear de modo instantâneo, momento em que passam a cheirar podridão. Tem-se impressão de estar num deserto daquelas que fundem chão e céu num horizonte que é, no fundo, um anti-horizonte: mais desnorteia do que serve de ponto de referência.

Parte do furor decadente da protagonista pode ser explicado por aquilo que Freud chamou de “trabalho do luto”, aqui com componentes particularmente masoquistas: a narrativa de Mifti tem qualquer coisa de degradação auto-imposta, só não mais doentia porque suficientemente hedonista e estroboscópica, com luzes, música alta e pessoas dançando. Parte dele se explica como oriundo das dores de parto da maturidade, da dificuldade de se tornar adulta: Mifti tem idade o suficiente para não ser mais chamada de criança, mas não o suficiente para ser tomada por adulta; encontra-se naquele limbo etário que vez ou outra se chamou de “idade ingrata” – ela chega a fantasiar com “o dia em que (…) presumivelmente terei entendido Foucault (…) [e] saberei subitamente que esse foi o melhor momento da minha vida.” (pos. 120)

Uma terceira parte, contudo, não cabe senão em quadros que permitam extrapolar essas explicações mais “fisiológicas”, assim contemplando a dimensão mais subjetiva de seus argumentos, traduzindo esteticamente a devastadora carga filosófica da obra, que oscila entre um niilismo pragmático e um existencialismo nuclear (suspeito que a quantidade de vezes que a protagonista ou outros personagens vomitam ao longo do livro tem tanto a ver com sua embriaguez e entorpecimento físicos quanto com a náusea sartreana).

Quando lemos Mifti descrevendo o ambiente de uma festa nalguma boate, “Até onde o olho pode alcançar, esses indivíduos pseudo-arrebatados na casa dos 20 estão tentando dançar suas almas para fora dos próprios corpos” (pos. 226), capta-se um perturbador elemento de extravasamento mórbido na noite berlinense contemporânea, expresso também nos generosos desvarios sexuais da protagonista, que se espalha viscosamente sobre o livro todo e se manifesta em rasgos dolorosos a cada certo número de páginas. Vemo-no em “O estado de espírito ideal é o de estar somente velejando pela merda, chapado na adrenalina” (pos. 1633), e flagramo-no também em “Eu aumento o volume da música a tal ponto, danço com tanta intensidade, exagero em tudo que faço, assim não chamo mais minha atenção acerca de mim mesmo.” (pos. 1698)

Tem-se a impressão de já ter visto isso antes na Alemanha.

Se Mifti tivesse vivido durante a República de Weimar talvez tivesse encarnado a decadência burlesca que vemos em Cabaret ou então nas sombras do Mephisto de Klaus Mann. Se tivesse existido sob a sombra do muro de Berlim, talvez vivesse a decadência grotesca cujo exemplo mais vívido talvez seja a personagem de Isabelle Adjani em Possessão, ou, com um toque kitsch de leste europeu, a Sabine d’A insustentável leveza do ser.

A persistente proximidade entre apoteose e morbidez na cultura alemã, herdeira talvez do vértice duplo da influência de Goethe, entre as alturas do Fausto e os abismos de Werther (ou vice-versa), se faz sentir no livro de Hegemann, oferecendo-se como possibilidade de restituição de sua pátria estética.

Afinal, vemos essa proximidade no eremita ranzinza que era Schopenhauer, em quem as belas linhas transcendentes coincidem com uma misantropia vil. Vemo-na também n’A Santa Joana dos Matadouros de Brecht, onde a catarse radical nasce das entranhas fétidas da linha de produção de um matadouro. Vemo-na insinuar-se mesmo na elegância de Thomas Mann, no neurastênico Castorp de A montanha mágica ou na bela decrepitude do esteta Aschenbach de Morte em Veneza. E vemo-na, por fim, na busca doentia de Mifti, na qual sua vitalidade juvenil degringola em decadência mórbida no mesmo ritmo frenético, “chapado de adrenalina”, com que os “pseudo-arrebatados” dançam.

Em termos de genealogia espiritual, portanto, há certa continuidade entre aqueles e esta; com um fio mais fino e desbastado talvez, ainda não maduro, mas descrevendo certa simetria em seu rastro. Em termos históricos, no entanto, as diferenças fazem pesar a percepção, e há de se notar isto, pois é elemento fundamental do livro, o que o faz impor-se como força viva ao seu universo presente.

Mifti é filha do século XXI e de seu particular modo de vida, no qual um senso individualista constitui centro nervoso da existência, textura mesma dela, reforçado pelo consumismo, que entroniza a satisfação individual como critério fundamental da experiência. Ela consome drogas, músicas, roupas, baladas, sexo e mesmo relações pessoais como se produtos, coisas pelas quais frequentemente paga mas que não a satisfazem, e cujos efeitos fugazes terminam deixando um vazio que se acentua na medida em que seus centros de prazer vão se saturando. Isto é, na medida em que relações humanas concretas não surgem desse conjunto de momentos, e tampouco um quadro de referências a partir do qual “ler” sua própria trajetória.

A escalada hedonista é rápida mas o destino frustrante: quando cessa o pirotecnia do prazer consumista, a solidão prevalece. Ao se retro-alimentarem, consumismo e individualismo vão se constituindo no anti-horizonte que mencionamos antes: inúmeros pontos de fruição intensa espalhados pelo tempo, mas sem formarem uma narrativa socialmente costurada, uma impressão que seja de evolução subjetiva, de valores éticos ou pontos de ancoragem emocional.

Despidos dos significados subjetivo e social, Mifti não pode ver os eventos que narra senão sob uma ótica mecânica e esquemática, fria a ponto de reduzi-los a reflexos biológicos ou a radical niilismo.

Quando fala de sexo, diz que ele “(…) não é senão uma urgência egoísta e bestial que desmascara as pessoas de que gosto, revelando-as conglomerados remotos de reflexos.” (pos. 1190) Quando narra suas andanças diz: “Estou caminhando por uma parte da cidade cheia de indivíduos em trajes limpos e asseados, todos suficientemente confiante e socialmente competentes para distraírem uns aos outros da sóbria consciência da falta de sentido da existência humana.” (pos. 1474) Quando descreve as vicissitudes da heroína, fala que ela “(…) não é uma daquelas abordagens da vida humana que oferece promessas difusas; ela é o único meio para decodificar a palavra ‘vida’: simplesmente nada.” (pos. 1825)

Tornada cada vez mais insensível aos paraísos artificiais contemporâneos que permitiam dissimular a vacuidade (solitária) de sentido, Mifti passa por processo que a diferencia de seus conterrâneos supramencionados: ao invés de afirmar-se perante o mundo, para se tornar a trágica heroína que a decadência apoteótica susteria em suas asas, ela recua. Mifti se estranha consigo, e tenta furtar-se à própria individualidade, senão mesmo à consciência: não se ressente imediatamente do mundo que acabou por assim moldá-la, ressente-se de si por ser não capaz de aceitá-lo.

Sua visão niilista (agente corrosivo importante para alterar o estado das coisas), ao invés de se tornar a explosão que demole, o grito que rompe a monotonia da ordem estabelecida, a decadência que serve como adubo revolucionário, volta-se contra si, implode. Onde deveria haver a indignação como combustível da vontade de mudança (como na tradição alemã precedente), passa a haver a culpa, subproduto acabrunhante de uma cultura individualista.

Naquela tradição a que d’antes recorremos, a decadência servia como escopo estético de expressão de dilemas humanos, tema para explorar suas glórias e suas misérias. Donde sua aparição ser menos constatação servil e mais impulso para a ação, artifício para um retrato humano que cabia negar nem que por petição de princípio, nem que exigisse o sacrifício trágico. Na narrativa de Axolotl roadkill, no entanto, o recuo da protagonista se impõe como elemento de avanço da trama, ao passo que seus circuitos trágicos recebem uma camada decisiva de tinta simbólica, repleta das ambiguidades humanas que a tornam tão interessante – e quiçá pesado demais para se sustentar sob seu próprio peso.

Apesar de dizer que estava “muito desiludida para procurar por efeitos colaterais nas profundezas de minha autocomiseração” (pos. 1467), Mifti faz disto seu cavalo de batalha, sua “solução” de continuidade: uma busca ativa pelo papel de vítima pareceu se desenhar como antídoto ao peso de uma responsabilidade que a cultura individualista tirou de prumo e deformou, tornando insuportável. É aqui que as implicações da “condenação à liberdade” da filosofia de Sartre mostram seu significado contemporâneo: numa cultura consumista a escolha individual é multiplicada infinitamente, repondo de modo insistente e brutal as responsabilidades sobre ser “a causa de si próprio”, assim tornando-as massacrantes ad nauseam.

Mifti escreve que “Esse mundo é feito de uma tal maneira que só tem lugar para vítimas”, acrescentando logo em seguida que “As pessoas esqueceram como sofrer.” (pos. 470) E por um momento parece regozijar quando é sujeitada: “Minha cabeça está sangrando. Estou mais calma do que nunca. Estou deitada de bruços, claramente identificável como uma vítima, saboreando o estado de total liberdade da responsabilidade.” (pos. 1043) Não há aqui um novo capítulo da fortuna estética da morbidez sendo encenado?

Supomos flagrar algo do tipo num diálogo pós-transa entre Mifti e um homem mais velho. Ele diz: “Qualquer dia desses eu vou simplesmente fazer cinquenta buracos nos pulmões de alguma pessoa aleatória, pois aí eu posso passar o resto da minha vida na cadeia e finalmente não ter que tomar parte nessa sociedade em que você não é obrigado senão a assumir constante responsabilidade por sua própria reputação.” Ela responde, oferecendo uma bizarra solução: “Eu posso ir à delegacia e dizer que você me estuprou. (…) É um plano fantástico. Eu posso passar o resto da minha vida legitimando tudo o que eu fizer de errado por meio do argumento do estupro e você fica preso por quatro anos.” (pos. 1453-1459)

O que explicaria essa ojeriza à liberdade senão uma mudança no peso e no sentido da responsabilidade que lhe segue o rastro? Na balança de um e de outro, a experiência contemporânea parece ter feito a (des)proporção se tornar insustentável, ao passo que onde antes a morbidez cumpria seu efeito estético expressando pelo grotesco a vontade de liberdade (no pacto mefistofélico, na misantropia crítica de Schopenhauer, na neurastenia de Castorp, na podridão radical de Brecht etc.), aqui ela cumpre expressando um ressentimento à liberdade (na busca ativa pela vitimização).

O dilema é sartreano, mas sua forma é a contemporânea. Num desses momentos de lucidez mórbida que espocam no livro, vemos que Mifti tem noção da terrível ambiguidade dessa condição: primeiro ela diz, como evidência de sua sagacidade, “Eu tenho uma série de cicatrizes para mostrar toda vez que alguém me acusa de incompetência social ou outra coisa”, mas logo constata o absurdo dessa estratégia: “isso te cimenta diretamente no labirinto das vítimas” (pos. 2218).

Essa angústia constitui parte do motivo pelo qual Mifti não quer crescer, de onde vem o título do livro. O axolotle é um anfíbio, uma salamandra cuja característica mais curiosa é o fato de que ele atinge a maturidade sexual sem passar dos estágios iniciais. Ou seja, ele não cresce, não se torna adulto. Isso é precisamente o que a narradora diz logo nas primeiras linhas: “Por curioso que seja, eu sei exatamente o que eu quero: não crescer.” (pos. 114)

Que se note o conteúdo negativo do desejo, traindo ainda uma vez seu sentido filosófico: o que ela quer é não querer algo. É difícil não pensar aqui na nuvem de poeira pós-moderna que se ergueu com a queda do muro de Berlim, menos como evento material específico e mais como acontecimento filosófico e simbólico. Nos decretos de “fim da história” que se ouviu, a futilidade da ação política era um dos argumentos mais salientes, ao passo que se dizia que as pequenas oposições dentro da ordem vitoriosa eram o que restara. É o que parece transparecer no conteúdo negativo da vontade de Mifti, que serve de eixo à proposta do livro, transparecendo também na maneira como ela enxerga o “anti-capitalismo”, i.e., como “instinto de sobrevivência”: “Eu exploro meus ressentimentos, como contra os banqueiros por exemplo, para me defender contra o caráter supérfluo da minha própria existência.” (pos. 1860) À certa altura se chega a contabilizar o custo da ação política na contemporaneidade: “(…) a devoção pode levar à perda de si, e essa perda de si não tem mais nada a ver com amor, somente com auto-agressão.” (pos. 457)

Não há aí o resvalar, novamente, para “labirinto das vítimas”? Não há aí, ao mesmo tempo, uma tentativa desesperada de dar sentido ao nada sartreano? Essa é a última camada do trágico, aplicada pela tradição de morbidez numa realidade contemporânea, tão ambígua que é difícil dizer se continua constituindo modalidade trágica ou se não acaba ruindo sob o próprio peso de sua busca deliberada pela vitimização. Nessa síndrome de Peter Pan pós-moderna, a Christiane F. que é Mifti muda de figura e de significado, e só se preserva da acusação de “mimimi” porque tem a virulência da linguagem niilista e do argumento existencialista à seu favor. Porém, num mundo em que mesmo o dionisíaco nietzscheano foi despido de sentido filosófico pela profusão consumista, e em que o senso de responsabilidade sartreano foi tornado infinitamente mais pesado pelo mesmo motivo, não é essa uma nova forma do trágico?

[1] Há uma fala de um personagem no livro, Edmond, que talvez possa ser tomado como uma tentativa de álibi nesse sentido: “Berlim está aqui para misturar tudo com tudo (…). Eu roubo de qualquer lugar que ressoa inspiração ou que desperta minha imaginação. (…) está tudo bem, porque meu trabalho e meu furto serão autênticos enquanto algo falar diretamente a minha alma. Não é sobre de onde eu tiro as coisas, mas aonde eu as levo.” (pos. 96-103) Ver, a respeito: CONNOLY, Kate. Helene Hegemann: ‘There’s no such thing as originality, just authenticity’. The Guardian, 24 de junho de 2012; KULISH, Nicholas. Author, 17, says It’s mixing, not plagiarism. The New York Times, 11 de fevereiro de 2010; PILZ, Dirk. Helene Hegemann, the art of cut and paste. Berliner Zeitung, 11 de fevereiro de 2010; PATERSON, Tony. Publish and be damned: Young writer’s ego dramatically punctured. Independent. 19 de fevereiro de 2010; KIRCHNER, Stephanie. German teen’s debut novel: plagiarism or sampling? Time Magazine, 18 de fevereiro de 2010.