Em suas Teses sobre o conto o argentino Ricardo Piglia escreve que o conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Isso acontece de diferentes maneiras em diferentes autores e vertentes da literatura. No texto, ele demonstra como isso é aplicável desde Edgar Allan Poe até Jorge Luís Borges, Franz Kafka ou Ernest Hemingway.

De maneira geral, acho difícil discordar de Piglia. Não impossível, é claro, mas seria bastante trabalhoso e, de certa forma, até um pouco desnecessário. Tendo em perspectiva autores mais contemporâneos e avant-garde, as coisas talvez não funcionem bem do modo como ele descreve. São parte – e fruto – de um universo imensamente mais confuso.

O que, de maneira alguma, faz com que sua literatura seja menos apreciável. Aliás: talvez seja justamente essa ruptura com os padrões estabelecidos que torne possível que novos autores ainda escrevam de maneira interessante, que ainda consigam se diferenciar no grande mar da mediocridade da escrita contemporânea.

Mas não digo isso porque acredito que o conto, em suas formas mais tradicionais, esteja morto. O problema é que, com uma tradição tão rica atrás de si, é necessário que se escreva muito bem para que um contista não inove em nada e, ainda assim, valha a pena ser lido.

Já na segunda metade do século XX isso havia se tornado difícil: parecem predominar os romancistas aos contistas. Porém, nessa segunda classe, existem algumas verdadeiras jóias, que escrevem contos da maneira mais tradicional possível e, ainda assim, conseguem inscrever-se entre os grandes nomes. Uma dessas pessoas foi Isaac Bashevis Singer e, como prova, invoco aqui seu volume de contos Breve Sexta-Feira (Short Friday , no original).

O livro, publicado em 1963 – quando Singer já havia abandonado a Polônia pelos Estados Unidos há quase trinta anos – é composto por 16 contos, quase todos ambientados em seu país natal. Da mesma maneira, quase todos os contos têm profunda ligação com a vida judaica, com a religiosidade e o misticismo dos ortodoxos e dos chassidim – fantasmas, demônios e homens santos são uma constante.

Os contos, aliás, não fosse pelo elemento de transgressão moral que apresentam, seriam perfeitos textos tradicionais ídiche. Mas Singer aborda temas que são tabu – não só para a sociedade judaica ortodoxa, mas quiçá até mesmo para a nossa sociedade contemporânea e autoproclamada liberal: em “Yentl, o rapaz da Yeshiva”, por exemplo, ele conta a seu leitor a história de Yentl, uma moça que preferia viver como homem. Uma curiosidade a respeito desse conto é que, devidamente adocicado, transformou-se em peça da Broadway e, mais tarde, em um filme musical estranhíssimo (mas divertido), cuja estrela foi Barbra Streisand.

Ainda na contramão da tradição judaica, há o conto “Zeidlus, o papa”, sobre um sábio judeu que, tentado pelo demônio a partir de seu orgulho, converte-se ao catolicismo para tornar-se Papa. O rabino Jônatas, do conto “Não confio em ninguém”, também exprime dúvidas quanto ao caminho que escolheu – mas situa-se no extremo oposto de Zeidlus.

Em “Sangue” e “Debaixo da Faca”, Singer lança mão da violência. No primeiro, uma mulher ambiciosa engana todo um shtetl em nome dos pecados da carne e do sangue. No segundo, um drama digno de Dostoiévsky é delineado, com um pretenso assassino febril e meio-enlouquecido – o desfecho, porém, é de um humor mordaz, ou, talvez seja melhor dizer, de uma tragicidade patética.

Meu conto favorito, no entanto, é “O último demônio”, em que o narrador é o próprio tentador, com seus poderes sobrenaturais e pés de ganso. Ele conta, em tons melancólicos, sobre como ficou aprisionado em um fim-de-mundo pelo resto de seus dias eternos, sem nenhum judeu para tentar e nenhuma mulher com a qual divertir-se. Tudo o que lhe resta é um velho livro de contos ídiches.

Não ignoro que Singer foi também um romancista assaz celebrado. Aliás, acho que nenhum outro escritor de língua ídiche jamais alcançou seu renome. Minha intenção era apenas provar que, também como contista, inscreveu seu nome no livro dos grandes.