Haruki Murakami é um dos principais nomes cotados para ser galardoado com o Nobel de Literatura, tanto que nesse ano mesmo ele chegou a estar entre os três favoritos nas tradicionais casas de apostas inglesas. Mesmo não tendo sido premiado (ainda), a ansiedade e a espera em torno do seu mais recente livro, 1Q84, foram grandes.

Assim como em outro livro seu, Kafka à beira-mar, Murakami já insere uma referência literária logo de cara, no título, de modo que, ao que parece, a toada do livro se dará em torno da obra citada (ou ao menos de algum de seus elementos). Isso, contudo, não ocorre com a frequência com que eu esperava no livro, pois são pouquíssimos os momentos em que lembramos que uma referência a Orwell e a sua obra jazem no título do livro.

Estruturalmente, o livro se constitui de capítulos que seguem ora um ora outro personagem. Esses capítulos alternam-se, deixando o ritmo da narrativa bastante atraente, uma vez que as situações-limite são várias, de modo que pareça sempre ter algo acontecendo. Esse recurso também amplia outra das características de Murakami, que é criar a impressão de inúmeras intersecções entre as duas histórias (dos dois personagens) quando na verdade elas mais roçam-se levemente do que se cruzam propriamente. O divertido é que a cada elemento que se repete de um capítulo para o outro, o leitor parece estar tendo epifanias ou déjà vu’s constantemente.

Os dois personagens de 1Q84 são Aomame e Tengo Kawana. Ambos foram colegas quanto estudavam em um colégio no Japão. Aomame acompanhava sua mãe na rotina proselitista de porta em porta, já que era membro assíduo de um culto. Já Tengo tinha de acompanhar seu pai nas rondas em que esse faz como coletar de taxas de assinatura da famosa televisão japonesa NHK. A história dos dois parece fadada a desaguar em duas vidas separadas, já que os dois se separaram e nunca mais se viram, mas existe um evento que selou a união deles: quando Aomame segurou a mão de Tengo por alguns momentos em um certo dia. Desde lá nenhum dos dois foi capaz de esquecer do outro, de modo que se busquem constantemente.

Quando conhecemos Aomame e Tengo, eles já são adultos. Aomame é instrutora de defesa pessoal, trabalha também como massagista e às vezes quase como uma personal trainer. Além desses ofícios, ela executa tarefas escusas para uma viúva que, devido aos imensos fundos pecuniários que possui, ajuda mulheres vítimas de violência doméstica. Já Tengo é professor numa “cram school” (uma espécie de colégio de ensino direcionado, como seriam os cursinhos pré-vestibulares ou cursos específicos para concursos públicos, por exemplo) e aspira ser romancista, escrevendo ficção nas horas vagas.

Tengo é amigo do editor Komatsu, que vendo no trabalho de Eriko Fukada, Air chrisalis (Crisálida de ar ou Casulo de ar), uma chance de conseguir dinheiro, convence o aspirante a romancista a ser o ghost writer do trabalho, lapidando-o com sua experiência. Da decisão de reescrever o conto, que ganha um concurso e vira imediatamente um best-seller, boa parte dos eventos do livro se desenrola, pois Fuka-Eri (como também é conhecida Eriko Fukada) tem em seu passado familiar ligação com uma sociedade religiosa (que brotou de um projeto de constituição de uma sociedade isolada) chamada Sakigake, cujos objetivos e cujas atividades estão ligadas de alguma forma aos interesses da viúva para a qual trabalha Aomame.

A história escrita por Fuka-Eri, ao que nos é permitido conhecer, revela uma porção de detalhes a respeito dessa comunidade religiosa, e apresenta diversos expedientes (meio plausíveis, meio mágicos) do líder dessa comunidade e seus asseclas. Há, por exemplo, o “pequeno povo” (Little People), que ao contrário do Grande Irmão, atuam de formas discretas porém profundamente influentes na dinâmica do mundo. Existem também os “preceptores” e os “receptores” (perceivers e receivers) que estabelecem conexão com um mundo abstrato ao qual pessoas comuns não têm acesso. O caudal de magia típico de Murakami foi bem explorado em 1Q84.

Fiquem atentos que ainda hoje será publicada a segunda parte dessa resenha, não percam!