Em Calibã e a bruxa (Editora Elefante, tradução do Coletivo Sycorax) Silvia Federici mostra como a narrativa da mulher perfeita foi construída a serviço do capitalismo. Esposas dedicadas, provedoras, mães, atenciosas, sempre prontas para agradar o marido e colocar mais filhos no mundo. Qualquer mulher que fugisse dessa descrição ou que ajudasse outras mulheres a fugir desse destino era uma bruxa que ganhava de presente uma estadia sem volta na fogueira local. São as mulheres que questionam sua posição, que vivem sozinhas, que conhecem remedinhos caseiros para evitar a gravidez, que têm gatos, que rejeitam o papel de esposa. Que têm conhecimento. Que leem livros. Que escrevem livros. Nada mais perigoso para o patriarcado do que uma mulher que lê. Imagina, então, a que escreve.

Gosto de pensar que escrever é uma forma de se rebelar contra o que se espera de uma mulher. A literatura é comandada por homens, nem precisamos repetir isso. Mesmo com tantas mulheres fazendo o trabalho dos bastidores, traduzindo e revisando, diagramando, vendendo, promovendo, é o homem quem fica com os créditos, ou é o trabalho de um homem que ganha visibilidade. Por isso, neste texto, não quero falar dos escritores que li nesse ano, mas das escritoras e suas personagens que certamente iriam parar numa fogueira – nos tempos da caça às bruxas e, se as coisas continuarem como estão, nos próximos anos também.

Começando por Cat Person e outros contos, de Kristen Roupenian (Companhia das Letras, tradução de Ana Guadalupe). Muito se esperava da primeira coletânea da autora do texto de ficção mais lido da New Yorker. “Cat Person”, quando publicado na revista, levantou a moral dos contos pela popularidade e discussão que gerou. É um texto que ilustra bem o que é ser uma jovem mulher solteira procurando por um casinho, com as trocas de mensagens, primeiros encontros esquisitos, medo e indecisão – e uma dose de sexo por educação. Outros textos do livro de Roupenian seguem essa linha realista de tratar de relacionamentos com honestidade e assombro. Já outros partem para algo fantástico, mas sempre com aquele tom macabro. Foram esses textos que me deixaram meio de pé atrás com o livro. Mas o que era bom, era bom demais. Melhor do que muita coisa escrita por homens que é aclamada como boa literatura. Kristen Roupenian promete e Cat Person e outros contos mostra isso. Ela certamente seria queimada por escrever bem.

Um livro que falou muito comigo foi Maternidade, de Sheila Heti (Companhia das Letras, tradução de Julia Debasse), uma mistura de ficção e ensaio que investiga a possibilidade da protagonista ser mãe ou não. A narrativa que mais me dá preguiça é aquela do amor incondicional de mãe, da vocação da mulher para gerar um filho. Essa narrativa nunca me pegou, e sempre vi com desânimo histórias em que mulheres têm uma gravidez indesejada e optam por ser mães. Me sentia traída. Heti nunca quis ser mãe, mas ao chegar aos 40 anos começa a analisar com mais profundidade essa ideia. E os argumentos que ela apresenta e rebate são tão verdadeiros. Para que ter um filho hoje? Para concretizar uma relação? Para não se arrepender depois de não o ter tido? Para se sentir mulher? Que direito temos de colocar outra pessoa no mundo, neste mundo? Ter um filho pode ser pior do que não tê-lo. Ter um filho pode ser um ato tão egoísta quanto não tê-lo. A investigação de Heti é profunda, dolorosa, e muito necessária. Uma mulher que não quer ser mãe seria a primeira da fila da fogueira.

Outro romance que gritou “TAIZE, ISSO É PARA VOCÊ” foi Meu ano de descanso e relaxamento, de Ottessa Moshfeg (Todavia, tradução de Juliana Cunha). A protagonista morreria queimada por vários motivos: viver sozinha, se envolver com um homem sem estar casada, não limpar a casa, se entupir de remédios, dormir o tempo todo. Ela é uma jovem fútil, de corpo e beleza perfeitos, que decide dormir durante um ano inteiro. Tudo é sem graça, o mundo artístico em que trabalha é falso, sua amiga é falsa, ela é falsa. Dormir é uma maneira de pausar a vida e os pensamentos para acordar renovada. O que você descobre no decorrer da leitura é que tem muito trauma por trás desse desejo de hibernar. Uma mãe julgadora, um pai ausente, falta de amor e de carinho que resultam em mais falta de amor e carinho – próprio e dos outros. Não é um livro que agradou a todos, justamente por conta dessa protagonista cheia de defeitos. Mas são esses defeitos que me fizeram gostar dela. Literatura não é só gente legal. Literatura também é gente escrota.

Vanessa, protagonista de Seane Melo em Digo te amo para todos que me fodem bem (Quintal Edições) seria acusada de fornicação. Boa fornicação. Com vinte e poucos anos e residente em São Luís do Maranhão, ela só quer encontrar um carinha legal com quem pode transar e andar de mãos dadas por aí, sem compromisso. Mas se relacionar é difícil. Pessoas são difíceis, homens mais ainda – o que essas desgraças querem, afinal? Acompanhando sua relação com três homens (João, Matheus e Thiago), Vanessa discorre sobre o prazer, os sentimentos, as expectativas e decepções com o sexo oposto. Tem boa dose de erotismo, humor e aquela filosofada casual de bar que é muito sábia. Um livro altamente perigoso para as mulheres, pois é aí que elas descobrem que não, elas não são loucas. E não, elas não são difíceis de compreender. Ler sobre os relacionamentos de Vanessa é como reviver nossos próprios relacionamentos. E onde já se viu uma mulher falar de sexo como a Seane? Iria para a fogueira sim.

Para terminar, quero falar de Sally Rooney. Seu segundo romance, Pessoas normais, foi publicado em 2019 aqui no Brasil (Companhia das Letras, tradução de Débora Landsberg). O talento de Rooney é outro que a condenaria à fogueira em praça pública. Que narrativa simples, e que jeito de retratar os relacionamentos do século XXI. O que mais me agrada na autora é o jeito com que ela expõe os sentimentos das personagens sem ser brega. A gente não quer ser brega, e o problema é que o amor muitas vezes é, sim, brega. Por isso suas personagens, mulheres e homens, passam por tantos perrengues emocionais. Marianne e Connell, de Pessoas normais, passam anos lidando com o vaivém de uma amizade/amor que encontra obstáculos naquilo que não é dito, que é subtendido (muitas vezes de forma errada). É simples, é direto e é tão bonito.

2019 foi um bom ano para descobrir novas escritoras e reencontrar as já conhecidas. Foram personagens diversas que eu conheci, que mesmo sendo tão diferentes da minha origem e experiências ainda assim tinham muito em comum comigo. A gente se identifica com as boazinhas, com as perturbadas, com as desagradáveis, pois aqui dentro somos um pouco de tudo isso. Mas uma coisa que não somos é submissas, fingindo obediência para escapar de uma fogueira – real ou figurativa. E em 2020 terão mais mulheres escrevendo, publicando e lendo, e se a fogueira voltar, a gente apaga ela com a força do ódio.


Taize Odelli, de Witmarsum (SC) para São Paulo (SP). É autora do blog rizzenhas.com e tem uma coluna na newsletter ADSC – Associação dos Sem Carisma. Tem três gatos e milita pela popularidade da capa de edredom.