Fiquei ausente da Flip antes de começarem a homenagear certas poetas – o que, na verdade, não foi nenhum ato político, mas simples preguiça de correr de mesa em mesa, procurar uma festa para virar penetra; além dos capítulos anteriores de procurar abrigos, pessoas para preencher o espaço físico, decidir datas de ida e volta… enfim. Pareço um velho reclamão, mas sou apenas reclamão (velho depende do seu ponto de vista).

Nesse ano eu voltei à Flip após esse tempo todo a convite da Dindi e de férias obrigatórias. Decidi ficar longe da programação principal, pegar a minha Olympus Trip 35 e sair flanando e fotografando o Centro Histórico de Paraty, perigoso aos chinelos alheios (algumas fotos estão ali no fim do texto).

Como eu não estava sozinho, acabava por acompanhar cada um dos meus amigos em algum compromisso, almoço ou simples encontro proposital com Renata Sorrah (beijo, Nazaré!) – de quarta a sexta foi assim, apenas com a troca da Renata Sorrah pela Alessandra Negrini nalguma noite que não me recordo.

Entre as desventuras intercaladas, me sentei naquele sábado de 13 de julho, com temperaturas nas alturas e muito vento, na mesa do café Paratoba (nome carinhoso dado pelos Posfaciers para o Café Paraty) junto ao André Araújo – nesse ano, mediador da casa Tag. Conversamos um pouco sobre sua próxima mesa entre a viúva de Saramago, Pilar Del Río, e José Luís Peixoto, autor presente na Flip para falar sobre Autobiografia – livro em que José Saramago encontra outro José, fazendo a realidade e a ficção se cruzarem.

André revisava suas notas sem parar, e eu folheava com média atenção o guia da Tag que vinha junto ao romance. Esse guião era composto por resumos dos capítulos – bem escritos, aliás. Me deparei com o do capítulo 25 sobre o autor e a sua forma de encarar o espelho (mais infos estragariam parte da diversão). O camarada do meu lado ainda estava compenetrado em todas aquelas notas, e eu procurando algum resquício de memória de contos ou crônicas de espelhos lidos em algum momento da minha vida (a memória é mais traiçoeira do que jogo do bicho). Encontrei os contos de Machado e Guimarães, e quem se enfiou em uma vertiginosa anotação fui eu para falar tudo o que eu pensava para o André. Aliás, um dos trechos que separei foi esse do Rosa:

Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim.

Finalmente ele leu e pediu para eu fazer uma pergunta relacionada ao tema “espelho” para José Luís Peixoto e por que isso era um ponto de virada dentro da narrativa. Sim, a gente entrou em pormenores da obra para chegar nesse ponto, o que tomou quase todo o nosso almoço. Meu amigo quis me incentivar de maneira torta: me disse que seria melhor eu fazer a pergunta do que um zé palestrinha.

Zé Palestrinha – mais um José para essa história – é aquele empunhador de dedo indicador e amante de sua própria biografia. Ou, resumindo: a pessoa que gira em torno da própria pergunta para se apresentar – algo relevante somente para ela – e esgota o tempo para outro indivíduo que gostaria de saber se “é possível viver de literatura” ou algo realmente sobre o tema. O maior medo de André era que uma possível conversa mais abrangente fosse interrompida por um Zé Palestrinha. Ele mesmo me afirmou reconhecer de longe quando esse exemplar de ouvinte disfarçado toma o microfone à mão.

Com a voz trêmula, sua marca registrada ao falar de um assunto do qual tem profundo conhecimento, André conduziu a conversa entre Pilar e José com maestria. Ela, debochada; ele, um misto de orgulho e timidez. A conversa se tornou leve rapidamente, e o microfone foi aberto ao público. Uma primeira pergunta aqui, uma segunda pergunta ali. Pilar era mais desenvolta no seu papel de convidada, e José era mais arguto.

O indicador subiu… era ele, José, o Zé, o Palestrinha, Senhor do Microfone, Lorde dos Rodeios. André o reconheceu, pegou seu próprio microfone e apontou para mim dizendo ter eu levantado, timidamente, o dedo por primeiro.

Limpei a garganta, segurei o microfone num estilo Chorão no karaokê e soltei a única pergunta possível – fazendo rodeios como Zé Palestrinha e olhando diretamente para José, agora o Peixoto, como um conhecedor e estudioso da sua última obra:

Na literatura de Rosa e Machado de Assis existem espelhos. Notei que você dedica um capítulo a essa descrição do personagem no espelho, ou seja, o que você vê quando se vê no espelho? Literalmente e metaforicamente.

José deu uma risada. Engoliu, balbuciou e tentou engatar dois começos de sentença, o que para meu alívio não me custaria uma tréplica. Pilar, por outro lado, se divertiu e me mandou um belo joinha acompanhado de um sorriso de orelha a orelha, como se fosse uma conquista jogar um escritor contra sua própria metáfora recém-lançada. O engasgo do Zé Luís tomou certo tempo, e o Zé Palestrinha teve de se contentar em sentar.

Alguns dos presentes podem ter me taxado como o Zé Palestrinha desta vez, mas André veio e me agradeceu pela pergunta, enquanto José, o Luís, veio me pedir desculpas por não conseguir responder e me agradeceu também.

Quando penso nessa pergunta de meses atrás, não consigo obter uma resposta sobre a minha relação com espelhos: a de me encarar e descrever o que enxergo além das marcas do tempo, aceleradas a cada ano que passa. Literalmente, eu tenho medo de me encarar no espelho e não me reconhecer, em cólera ou alívio ou sorriso de orelha a orelha, para ver se há uma alface ou restos de comida do dia. No fim, eu acho que essa Flip pela qual passei está refletida nas tais fotos tiradas durante as caminhadas pelo Centro Histórico e pelos encontros. Quanto mais encaro essas fotos, mais tenho certeza de que elas refletem belos dias da pessoa que estava atrás das câmeras. Porque atrás do espelho, além do reflexo, ainda não enxergo.

Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. (Guimarães Rosa)

Foto no início do post: Bruno Tavares