Dando seguimento aos Contos Essenciais Meia Palavra, resolvi indicar um conto que creio ser pouco conhecido em terras brasileiras – bem como seu autor –, mas que possui tradução e que foi publicado numa coletânea que, salvo exceções poucas, pode ser encontrada por um preço bem acessível. Trata-se do conto O Nada, de autoria de Leonid Andreiev.

Fiquei curioso por ler um livro dele por conta do título, Judas Iscariotes, onde ele explora a figura bíblica de um ponto de vista bastante interessante. Andreiev, em outros trabalhos, apresenta facetas inusitadas de situações, colocando como narradores personagens que nos fornecem prismas diferentes daqueles com que, “tradicionalmente”, talvez nos deparássemos.

Andreiev pouco se interessa por apoteoses. Ele se interessa pelo que há depois delas, o que existe para além de sua natureza incomum, justamente o ordinário, desprovido de glamour ou de elemento surpresa. Esse caráter ordinário e comum é, ainda, mergulhado num emaranhado depressivo e aparentemente fatalista, num pessimismo que em alguns momentos beira o desespero. No conto O Nada, essa é uma das coisas que nos salta aos olhos.

Um dignitário encontra-se deitado numa cama à beira da morte. Após alguns momentos, o diabo (que nada tem de mefistofélico) aparece, diz que ele está morto, que seu corpo está sendo preparado para os ritos fúnebres, e lhe oferece um pacto que promete ardis e ambiguidades perigosas. A proposta, entretanto, é bastante incomum: o dignitário pode escolher entre a morte definitiva e uma existência eterna no inferno.

Por mais que essa escolha possa parecer óbvia, o diabo, tomado por um desânimo inquietante, lhe apresenta as duas opções. Se o dignitário escolher o descanso eterno – a morte definitiva –, perderá a consciência de si, deixará de ter uma individualidade, será, diante da imensidão temporal que passará a integrar, o próprio nada. Se decidir-se pela vida no inferno, ele passará por tormentos e torturas lancinantes, mas manterá, na medida do possível, sua individualidade. Nessa opção, o dignitário seria “ele”, e não “nada”. Ou seja, ele tem que escolher entre ser “nada” ou ser “algo a custa de muito sofrimento”.

Um peculiar diálogo se desenrola, a negociação segue e o dignitário pondera sobre as opções. Por mais que ele deseje descansar, afinal ele está velho e cansado, decidir tornar-se nada não é uma escolha fácil. Ao mesmo tempo, aceitar a proposta de rumar ao inferno para lá habitar pela eternidade também não lhe parece nada convidativo.

O diabo diz que tornar-se nada inclui desapegar-se completamente, cessar de existir; enquanto que os tormentos do inferno, após algum tempo, se revelam entediantes e que, das pessoas que para lá foram, a maioria reclama por algo que rompa a banalidade da tortura, nem que seja outra forma de tortura. O desânimo do diabo, que pode ser até um recurso de barganha, transparece, a princípio, que seus domínios talvez sejam mesmo maçantes após algum tempo.

Andreiev se vale de uma ambiguidade sugestiva nesse sentido, deixando ao máximo o leitor partilhar da indecisão do dignitário. O tempo urge, já que seu corpo será sepultado em breve, de modo que ele tem que fazer a decisão rapidamente. Colocamo-nos na pele do velho e ficamos pensando que decisão tomaríamos em seu lugar. É deveras um drama agônico, uma situação extrema.

As possibilidades metafóricas são amplas e variadíssimas. Podemos entender que essa é a decisão primordial da existência humana, afinal, o suicídio é uma possibilidade que jaz sempre em aberto (o nada, a morte) e a existência está longe de ser um “mar de rosas” (o destino de provações diárias). A dureza da vida como a enxerga Andreiev – que estudou Psicologia e Psiquiatria – é a referência para colocar-nos diante da condição em que viver é resistir ao afogamento pessimista fatal.

(A coletânea a que me referi no início do texto é a do Clube do Livro, lançada aqui em meados dos anos 80, e que possui como título Judas Iscariotes)