Você deveria dar uma chance para The OA. A série lançada em 2016 foi motivo de chacota – pelo menos na minha bolha –, em grande parte por causa do seu plot fantástico (não é ironia, é uma história de fantasia, sci-fi, drama e mistério, mas nada impede de eu classificá-la como fantástica, como adjetivo e não gênero), suas danças que ressuscitam pessoas e, na segunda temporada, suas personagens em outras dimensões. Tudo começa quando Prairie reaparece após sete anos com cicatrizes e curada de sua cegueira na infância. Prairie, agora OA (Original Angel), precisa de 5 pessoas para realizar um “ritual” para atravessar dimensões e tentar encontrar Homar. Como tudo é narrado pela personagem para convencer seu grupo a ajudá-la, fica difícil separar realidade e loucura, afinal em diversos momentos ela se encontra com figuras celestiais em limbos interdimensionais. O que poderia ser uma história repleta de diálogos expositivos acaba se desdobrando em ramificações de morte, loucura e conspiração.
Não estou aqui para falar de The OA. A série está ali com suas duas temporadas completas na Netflix, já cancelada e sem chance de se desdobrar no que seria uma terceira temporada bem mais sarcástica e fantástica. Em resumo, a segunda temporada termina com outra viagem dimensional acabando numa realidade em que Prairie é uma atriz interpretando OA numa série de TV estrelada por ela e Jason Isaacs (parte do elenco desde a primeira temporada).
Eu preciso falar de The OA. Graças a essa série massacrada por um lado e amada por outro, acabei esbarrando no melhor livro que li em 2019. A série solta diversos nomes, teorias e easter eggs para quem gostaria de ter uma conversa de bar acompanhada por uma dança que apenas o programa poderia nos presentear. Reassisti a primeira temporada para ter tudo um pouco mais fresco na cabeça. Esperava novos episódios bem menos “expositivos” e mais “você está prestando atenção?” (ou como diria aquele aviso da Netflix: “Você ainda está assistindo The OA?”). A segunda temporada começa com outras personagens: uma é Karim, um detetive particular que investiga um misterioso desaparecimento envolvendo uma casa abandonada e um jogo online. É claro que em algum momento Karim e OA se cruzam, mas antes disso ele cai em uma livraria e nela encomenda um livro para conseguir o endereço da Dr. Rhodes.
Cheguei na parte do livro. Vai lá assistir The OA.
O livro encomendado é A parábola do semeador, de Octavia E. Butler, parte de uma série que teria três livros, caso a autora não tivesse falecido, chamada “Parábola” (ou “Semente da Terra”). Resolvi trazer à tona esse título intrigante durante uma conversa com amigos – mais para tentar convencê-los da genialidade da série do que para falar de livros. É claro que meu amigo, fã de ficção especulativa, tirou o livro da prateleira e me convenceu a ler – irônico como queremos convencer alguém e essa pessoa nos convence de algo (ainda bem que não era política em ceia de natal).
A parábola do semeador apresenta Lauren Olamina, uma garota negra de 15 anos, filha de um pastor/professor que vive em um bairro situado em uma Califórnia distópica no ano de 2020. Ela sofre de uma síndrome de “empatia” pela qual sente dor e quase morte com as cenas de violência que presencia. O abismo entre as classes sociais é discrepante: os mais ricos vivem em condomínios de luxo e empregam pessoas pobres pagando apenas a comida de que necessitam. A polícia é chamada em casos de extrema urgência e não são um serviço público, sendo necessário pagar para as investigações continuarem. O bairro de Lauren seria a classe média dessa realidade, onde há emprego para poucos, casas superlotadas com parentes de diversos graus, aulas de tiro para se defender de viciados e invasores, romances incestuosos e nenhuma mudança para essa realidade – não importando quem esteja governando o país após o colapso socioeconômico.
Mesmo sendo filha de um religioso, Lauren não consegue crer que aquele Deus é o que deveria seguir. Apesar de estudiosa, ela não quer negar Deus, mas achar um significado maior do que o pregado pelo pai. Em uma mistura de biologia e crença, Lauren escreve sobre a sua própria religião e a chama de Semente da Terra, sempre afirmando que Deus é Mudança.
Pela narração do seu diário, Lauren nos conta um pouco da sua visão da Mudança e interpreta os signos através do que ocorre em seu bairro. Não há um só momento em que ela não pense em fugir para espalhar a palavra da Semente da Terra, mas, como sabe que tudo é Mudança – efeito e consequência –, seus planos sempre precisam ser alterados toda vez até algo inevitável acontecer.
A sucessão de mudanças, acontecimentos e histórias deixa mais claro para Lauren que sua religião deve ser fundada, de que ela deve espalhar a palavra. A todo tempo, cruzando com diferentes pessoas, passando por adversidades e encontrando o amor de maneira torta, Lauren, contestadora, se vê em momentos de provação em que as suas palavras devem ser postas em prática.
A parábola do semeador é uma narrativa pulsante nas partes mais mundanas, como comprar roupas e conseguir comida, e segue mais eletrizante em suas descrições de fugas, trocas de tiros e questões existenciais. Ao transformar o vício em um novo psicotrópico que faz seus usuários atearem fogo em tudo e admirarem suas chamas e ardor, Octavia mostra o fogo – o que deu poder aos seres humanos séculos atrás – em sua própria ruína, um símbolo bem-vindo se pensarmos na parábola que intitula a obra. Esse poder de destruição de nada serve, pois aqueles que o utilizam ficam inertes, moribundos sem ação real, entregues a ver tudo virar cinzas. Mas não vamos nos esquecer que Lauren acredita na Mudança, e, para que ela ocorra, pode ser que tudo precise ser destruído.
O paralelo com The OA, principalmente em sua primeira temporada, se dá pela Mudança e pelo poder da palavra para semear uma verdade. Entre tiros, realidades alternativas e metalinguagem, o princípio de toda a mudança começa com a palavra, seja de um anjo, seja de uma garota negra. Afinal, o mundo externo está em constante mudança, e nós mudamos com ele ou tentamos mudá-lo.
Lauren e OA querem mudar os seus mundos, mas precisam sobreviver no mundo de outras pessoas – crentes ou não no que elas tem a dizer. É claro que para Lauren a mudança e a sobrevivência têm um peso maior por ela ser negra, isto é, por estar em uma posição de passividade em um mundo branco – status imutável em um mundo sem mudança. Esmiuçando um pouco mais, posso falar da questão da sobrevivência versus empatia. Ambas as personagens sentem o peso do que os outros sentem. No caso de Lauren, é preciso matar para não carregar a dor e morrer em agonia. Sobreviver não é apenas resistir; para Lauren, resistência é criar.
Se Deus é Mudança, e quem muda somos nós, seríamos nós Deus? Ah, Lauren…Ah, Octavia…