Depois de o Bruno Mattos ter publicado o texto de apresentação do Adeus às Traças, os outros três posfacianos envolvidos no projeto dão agora suas razões para não comprarem livros por um ano:

Arthur Tertuliano

“Quando se olha muito tempo para o abismo, ele, o abismo, olha para você” (ou “Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar dentro de ti”)

Troque “abismo” por “biblioteca” nesta frase de Nietzsche, em duas traduções, e você terá a dimensão do meu dilema. Encaro os livros parados na estante com bondade, pensando nas ocasiões em que julguei necessário adquiri-los: livros clássicos e obrigatórios, livros que todo mundo está lendo e você precisa ler também, livros que nunca mais estarão tão baratos assim, livros pelos quais parecia valer a pena competir nas gincanas entre livreiros, livros praticamente esgotados, implorando para serem resgatados de um sebo, livros interessantes que serviram para chegar no valor do frete grátis. Não posso dizer o mesmo do olhar que me devolvem. These judgemental bitches, eles me julgam silenciosamente – à exceção de quando uma ou outra pilha desaba com estrondo.

Vim para São Paulo com apenas dez livros. Larguei a biblioteca com meus pais para só trazê-la quando tudo desse certo. Tudo meio que tem dado certo e ainda não cumpri a promessa. Mas nesses quase cinco anos, o número de livros acumulados beira os 300. Isso sem contar todos os armazenados na Bernadette, meu Kindle.

Não era meu plano acumular tantos livros, afinal já possuía uma biblioteca de verdade: ela só estava longe. Mas também nunca fui um devorador da biblioteca pessoal. Quando iniciei meu blog literário (e conheci os posfacianos), eu tinha cadastro em diversas bibliotecas públicas e emprestava quinzenalmente uns 15, 18 livros, todos submetidos a uma concorrência desleal e ferrenha: quais seriam lidos de imediato? Quais seriam renovados? Quais sequer seriam abertos? Nesse meio tempo, os livros que eu comprava nunca tiveram a menor chance, e eu me justificava dizendo que se destinavam a quando eu sofresse um acidente e não tivesse como pegar mais nada em bibliotecas.

Decidi entrar no Adeus às Traças não sei bem por quê. Talvez tenha sido o sentimento de “deu certo” e a necessidade do espaço para trazer meus livros de Natal. Talvez seja a diarista que desistiu de entrar novamente no meu quarto enquanto tiver tanto livro parado. Pode ter a ver com meu descompasso com as bibliotecas paulistanas – e o atraso de mais de um ano na Mário de Andrade. Quiçá um tantinho de culpa pelos livros de amigos emprestados há anos e nunca devolvidos, pois não lidos. Decerto deve haver alguma curiosidade por releituras envolvida na decisão.

No final, acho que foi mesmo a troca desafiadora de olhares com a biblioteca que me fez entrar com tudo nesse projeto. E, é claro, a sensação de um felino se aninhando gostosamente em meu colo. Isso me lembra: não tenho gatos. E percebo que os olhares, furtivos e traiçoeiros, são trocados com a biblioteca de minha amiga enquanto cuido dos bichanos. “Não me deixes cair em tentação!”, rezo, enquanto mãos rápidas pegam um último livro emprestado. Ainda é 30 de dezembro de 2019; as regras ainda não estão valendo.

Daniel Falkemback

Pois é, aceitei a proposta do Bruno de participar do Adeus às Traças. Talvez seja porque estou para mudar de casa e me vi pensando sobre o apego e o desapego de livros. Nas últimas semanas, me livrei de alguns que decidi que não vou ler nem reler. Restaram todos os outros. Confesso que uns estão na estante há tempo demais esperando para serem abertos. Tem outros que li anos atrás e, sinceramente, preciso reler. Durante esse ano de 2020, acho que a maioria deles vai ser lido ou relido.

Com certeza, a leitura dos livros para o Adeus às Traças vai ser um momento de formação paralela para mim. Tem um pouco de tudo aqui em casa: lançamentos brasileiros recentes de editoras pequenas e grandes, edições de clássicos, coisas mais desconhecidas, alguma coisa de filosofia, história e artes. Ao longo do ano, vou dar minhas impressões desse experimento de leitura, desse reality show sem eliminações (assim espero) nem prêmios (infelizmente). Aliás, talvez o prêmio seja justamente a economia que vou fazer ao longo de um ano sem gastar o que não posso em livros. E, é claro, o mais importante: todas as descobertas que estavam ali, na estante, só esperando para serem feitas. Também vai ser um estímulo para frequentar mais bibliotecas, que sempre foram importantes para mim, e fazer essa exploração tão peculiar e pessoal do que o mundo nos oferece em matéria de livros.

Bem, espero que o nosso projeto faça com que vocês também leiam mais o que está abandonado por aí e peguem emprestado o que amigos recomendarem e o que existir em bibliotecas, caso sejam acessíveis para vocês. Vai ser um ano bem interessante tanto para gente quanto para quem quiser nos acompanhar.

Raquel Toledo

Há poucas situações na vida em que você se dá conta de que tem livros demais. Mudança de casa é uma delas. Outra é quando a visita pergunta: “você já leu tudo isso?” e o que sobra é rir, dizer que não e confiar que ninguém lê tudo o que tem em casa. Comprar livros, em si, não é um problema. Ao contrário: claramente eu gosto, mas comprar e não os ler foi perdendo a graça. Até dezembro de 2019, nada disso me incomodava, mas o espaço ficou apertado, as estantes abarrotadas, e me dei conta de que compro em média o dobro de livros que leio por ano.

Sempre olhava para minhas sacolas de livros depois de algum saldão e sentia felicidade, porque sabia que estava construindo com eles algo de valor, algo que desde criança quis ter: minha biblioteca pessoal. É um desejo meio burguês, eu sei, mas sempre quis ter um quarto para eles e poder me sentar lá e me sentir apaziguada, segura. Com as demais compras da vida, sou bem espartana, mas sempre houve limite para livros no meu cartão.

Quando o Bruno soltou, entre os colaboradores do Posfácio, a ideia de não comprar livros no ano-novo como um esforço de diminuir a pilha de não lidos em casa, pensei em colocar à prova todo o esforço (financeiro e intelectual) que fiz ao longo desses anos todos e viver 2020 só lendo os livros que selecionei e escolhi. E, confesso, por mais que eu seja uma amante de livrarias, estou animada para ler as histórias que, em algum momento, escolhi para me fazerem companhia ao longo da vida. Vai ser divertido conhecer tantas personagens e tantos lugares dos quais só ouvi falar – ou li na quarta capa.