Resenha de Luiz Abdala Jr. (*)

No primeiro semestre deste ano, a Companhia das Letras publicou a primeira tradução brasileira de A literatura nazista na América, assinada por Rosa Freire d’Aguiar, importante tradutora e jornalista, que já entrevistou nomes como Roland Barthes, Georges Simenon e Salvador Dalí. Originalmente publicado em 1996, o livro é anterior a outros do autor que já foram traduzidos no Brasil, como Chamadas telefônicas, Estrela distante e Os detetives selvagens. Inclusive, é possível encontrar em A literatura nazi… certo arquétipo de personagens que são frequentes nas narrativas de Bolaño, tais como poetas, artistas visuais, políticos, policiais, professores, personagens que sofrem transtornos mentais e também as que, de algum modo, assumem posturas autoritárias. No caso, essa última característica é a que costura o livro: trata-se de um compêndio fictício, no formato de relatos biográficos, de escritores latino-americanos ou norte-americanos que foram e são cúmplices do nazi-fascismo.

O primeiro relato é sobre Edelmira Thompson Mendiluce, poeta argentina de requintes idílicos e subjetivistas, da primeira metade do século XX. Apesar do pouco apelo de seus livros, é reconhecida como anfitriã de importantes salões literários platenses e fundadora de revistas literárias, além de ter conhecido pessoalmente Adolf Hitler em 1929. Esse relato é também uma pequena síntese do que virá na sequência: uma série de poetas e escritores que compartilham valores nazi-fascistas ou conservadores. De diferentes perfis, são também acadêmicos, filósofos, líderes de torcida organizada, presidiários, fundadores de revistas literárias ou que para elas escreveram, etc. Todos nasceram em algum momento do século XIX para cá, e alguns ainda estão vivos. Não são somente nomes ligados ao decadentismo, parnasianismo ou neoclassicismo que expressam valores reacionários através da literatura, como uma primeira impressão poderia supor, mas os relatos abarcam autores de diferentes expressões, desde a  ficção científica até poesia de vanguarda. Nesse sentido, as narrativas abrem o leque para pensar as relações nefastas entre a barbárie nazi-fascista e a cultura. Nelas encontramos a apropriação dos lugares de cultura como forma de estabelecimento ideológico e intelectual do discurso fascista.

O livro é dividido em partes que possuem títulos por vezes um tanto chamativos e algo intrigantes, contendo espelhos e fim do mundo, imagens caras ao autor. Tal como em uma enciclopédia, dentro das partes há subcapítulos nomeados a partir do nome do escritor biografado, assim como a sua data de nascimento e falecimento. Ainda que o formato possa nos remeter a certo aspecto documental, por vezes burocrático, os olhares para a situação são singulares em cada relato. Com exceção da última narrativa, não há alterações substanciais nos ângulos e estilos narrativos. Contudo, algumas histórias de vida são mais detalhadas. É o caso da própria família Mendiluci, que, além de Edelmira, é também composta pelos relatos da vida de seus filhos Juan e Luz. Ou a história de Irma Carrasco, poeta e teatróloga mexicana de tendências místicas, católica fervorosa e saudosa da ditadura mexicana, que se casa com um militante do Partido Comunista e sofre frequentes atos de violência conjugal do marido. Há também as histórias de Thomas R. Murchison e John Lee Brook, ambos poetas, presidiários e membros da Confraria Ariana, um dos tantos grupos nazistas que existem nos presídios estadunidenses. E também o curioso relato da vida dos irmãos Schaffiano, poetas e líderes da torcida do Boca Juniors. Outros textos são mais curtos e trazem dados praticamente topicalizados de datas e nomes, e neles parece prevalecer o esquecimento. Pessoalmente, me chamaram a atenção os dois brasileiros que aparecem no livro: Luiz Fontaine da Silva, carioca, filósofo católico e autor de inúmeros livros que debatem a obra de nomes como Diderot, Kant, Hegel, além de 6 volumes de crítica a O ser e o nada, de Sartre; e Amado Couto, mineiro, romancista policial que trabalhava para a ditadura militar e que, após dissecar os livros de Rubem Fonseca, enxerga o que seria “o grande romance policial brasileiro” em um hospital, quando internado por amigos.

Remetendo a outros livros do gênero, sempre um tanto normativos em seus modos de apresentação e organização das escolas e autores, o caráter enciclopédico nos deixa um tanto hesitantes, suspeitando até que ponto alguns dos escritores ali, a princípio totalmente fictícios, não poderiam ser, na verdade, fundamentados em escritores reais. Esta intersecção entre ficção e realidade, ainda que somente imaginada, é justamente possível pelo formato escolhido. Inclusive, ao recomendar o livro para algumas pessoas, mais de uma me perguntou se se tratava mesmo de um livro de ficção, demonstrando essa suspeita ou a expectativa de que se tratasse de uma enciclopédia como tradicionalmente conhecemos. Mas dessa intersecção imaginária com a realidade, que está apenas no campo da suposição, desdobra-se outra, mais concreta, entre A literatura nazi… e outros livros do autor: é possível encontrar personagens, cenas e referências de outras narrativas bolanianas, tal como o diretor de filmes pornográficos Adolfo Pantoliano, brutalmente assassinado em seu casting de filmagem, cuja morte é também lembrada mais tarde no livro Chamadas telefônicas.

A “citação da própria obra”, nos moldes de uma intertextualidade interna, é uma das assinaturas de Bolaño. No caso, está presente, sobretudo, na história de Carlos Ramírez Hoffmann, último conto biográfico do livro. Hoffmann é um poeta e artista visual chileno que, servindo como aviador no exército de Pinochet, escreve poemas (alguns sendo, inclusive, passagens bíblicas em latim) no céu com a fumaça de seu avião. O seu método artístico o faz ser considerado por alguns como um poeta de vanguarda, o que propõe um movimento contraditório entre o autoritarismo e o fascismo do regime chileno e a inventividade reacionária do piloto. Tal contradição coloca em tensão o próprio estabelecimento ético e discursivo dos projetos de vanguarda da América Latina. A história de Hoffmann será a de Carlos Wieder, estendida e transformada no romance Estrela distante, publicado alguns meses depois, ainda em 1996:

Tudo começou mal. O dia da exibição aérea amanheceu com grandes cúmulos-nimbos negros e gordos que baixavam pelo vale para o sul. Alguns chefes o desaconselharam a voar. Ramírez Hoffmann não ouviu os maus presságios. Seu avião subiu e os espectadores viram, com mais esperança que admiração, algumas piruetas preliminares. Depois ganhou altura e desapareceu dentro de uma imensa nuvem cinza-chumbo que se deslocava lentamente sobre a cidade. Saiu longe do aeródromo, num bairro da periferia de Santiago. Ali mesmo escreveu o primeiro verso: A MORTE É A AMIZADE. Depois planou sobre os armazéns ferroviários e sobre o que pareciam fábricas abandonadas e escreveu o segundo verso: A MORTE É O CHILE. Embicou para o centro. Ali, sobre o palácio de La Moneda, escreveu o terceiro verso: A MORTE É RESPONSABILIDADE. Alguns pedestres o viram.

Após os relatos biográficos está o “Epílogo para monstros”, contendo minibiografias de personagens secundários no texto, a referência dos livros citados e a descrição das revistas literárias que são elencadas ao longo dos relatos. Algumas chamam a atenção, como a misteriosa El Cuarto Reich Argentino, e lembram as inúmeras editoras surgidas em Buenos Aires, depois do final da Segunda Guerra Mundial, que eram dedicadas a publicação de livros de ex-combatentes nazistas ou de escritores nazistas que fantasiavam sobre as glórias (quando não totalmente fictícias e aventurescas, bastante idealizadas) dos combatentes do Terceiro Reich:

El Cuarto Reich Argentino. Sem a menor dúvida um dos empreendimentos editoriais mais estranhos, bizarros e obstinados de todos os que brotaram no continente americano, terra fértil para empreendimentos nas raias da loucura, da legalidade e da tolice. A trajetória da revista editada pelo grupo começou no momento crítico dos processos de Nuremberg e o primeiro número foi oportunamente todo dedicado a rebater a legalidade deles. No segundo número, junto com traduções de autores alemães perfeitamente passíveis de esquecimento (entre os quais Baldur von Schirach, autor de um poema às gardênias, chefe das Juventudes Hitleristas e naquela época julgado em Nuremberg por crimes contra a humanidade), o leitor curioso pode encontrar três textos em prosa de Ernst Jünger.

A literatura nazi… constrói uma espécie de cânone às avessas, para o qual os escritores eleitos são intragáveis. Se para certa perspectiva iluminista a assim chamada “alta literatura” cumpriria um papel emancipador para o indivíduo, aqui é jogada luz na literatura daqueles que, de algum modo, endossam ou endossaram posições políticas e éticas ligadas ao autoritarismo e ao militarismo, à intolerância e ao genocídio. Releva-se, assim, o problema de certo discurso que assume a literatura enquanto uma instância invariavelmente atribuída de valores positivos e edificantes, mas politicamente esvaziada. Literatura e política, como nos faz lembrar o livro de Bolaño, são experiências e discursos que se encontram, que se cruzam e imiscuem, que constroem sentidos juntos. Sabemos, por exemplo, que nomes como Günther Grass combateram na Segunda Guerra Mundial ao lado dos nazistas, ainda que neste caso o escritor alemão recupere criticamente essa trajetória. No entanto, autores como Louis-Ferdinand Céline causam desconforto até hoje quando debatemos a sua proximidade com o nazismo, ao mesmo tempo em que a sua obra não deixa de ser bastante impressionante.

Eduardo Sterzi, na contracapa da edição da Coleção Folha de Estrela distante, lembra do emblema proposto por George Steiner para a imbricação entre cultura e barbárie na imagem do funcionário nazista que, durante o dia, trabalha num campo de extermínio e, de noite, lê tranquilamente Goethe e escuta Bach em seus aposentos. Para Sterzi, Carlos Hoffmann, agora chamado Wieder (em alemão, “outra vez”), nomeia a persistência do nazismo como eterno retorno ou compulsão a repetição, isto é, o nazi-fascismo sempre a nos ameaçar. Nesse sentido, A literatura nazi… ressoa as palavras de Sterzi, provocando a reflexão sobre a permanência do nazi-fascismo dentro dos altos escalões da cultura letrada ocidental.

(*) Luiz Abdala Jr. é graduado em Letras – Português e Alemão e está para começar o mestrado em literatura. Mora em Curitiba (PR).