Por Gui Coelho (*)

“Desconfiei de que aquilo que minha mãe fazia, nunca parar a vida por causa do pranto, era uma espécie de milagre”, diz Estela, a protagonista do romance Estela sem Deus, de Jeferson Tenório, escritor radicado no Rio Grande do Sul. A narrativa em primeira pessoa, de 206 páginas, é a história da adolescente Estela, gaúcha, que migra para o Rio de Janeiro um pouco antes das eleições de 1989. Conhecendo o Brasil que existiu de Collor a Bolsonaro, um suposto decolar democrático para uma aterrissagem protofascista, o livro de Tenório é sintomático não só para o Brasil de hoje como para o de sempre, infelizmente.

A narrativa de Estela começa em algum ponto da infância e vai até o final da adolescência, contando como Estela reage à sequência de violências e desamparos a que ela, a mãe e o irmão são submetidos. Para todos esses acontecimentos, Estela oferece uma postura questionadora e pensativa, não de quem sabe ou pressente o que virá depois, mas de quem desconhece de fato o que lhe acontece e que, ao mesmo tempo, pode contar com um mecanismo inato de avaliação. Como na situação acima, na qual vê sua mãe seguindo em frente após um revés (evitarei spoilers de qualquer natureza) . O milagre que Estela atribui à força da mãe também pode ser conferido à própria percepção arguta que a garota tem da vida.

Numa das primeiras passagens do livro, Estela é apresentada à morte. A avó e o irmão, Augusto, a acompanhavam neste encontro. À avó, ela pergunta: “o que acontece durante morte?”, ao que a avó responde: “na morte, não há um durante, apenas um estar e não estar vivo”. Estela seria apresentada à morte mais vezes durante a narrativa, sempre protegida por este escudo reflexivo (e não refletidor). Querer ver o durante da morte é um dos traços mais marcantes da psicologia da personagem, que perscruta todos os acontecimentos da sua vida jovem de forma inédita para si mesma e sem necessariamente se impressionar com esse “dom”. É ele que a faz sobrepujar os temas que se repetem no livro. Estela é apresentada à violência, ao desamparo, à fé e à resignação e em todos estes encontros. Por mais que pareça sucumbir, ela pode contar com esta capacidade de pensamento que lhe é própria.

Às vezes, durante a leitura, é como se Estela fosse uma chama pequena e recalcitrante, sobrevivendo a uma série de soterramentos. Essa impressão é acentuada pela maneira como Tenório criou a voz de Estela: ela narra sua história de forma simples e sensível, sem grandes acrobacias filosóficas, por mais agudos que sejam os questionamentos da filósofa Estela. É uma leitura altamente recomendável para adolescentes sobre uma heroína adolescente.

Estela tem um irmão, o já referido Augusto. No início, ambos parecem ter este tino inabalável do pensamento, uma arma que precisariam usar para lidar com as adversidades a que são apresentados. No entanto, ao encontrarem um desamparo, Augusto, que até então se assemelhava à irmã nas habilidades filosóficas e dela se distanciava no quesito humor – ele é o engraçado da dupla, mesmo que a irmã o considere um “babaca”, quase sempre com razão -, Augusto cede ao ópio comum dos desamparados, a religião, de forma irreversível (até onde é possível saber). O mesmo menino que numa zuêra implicante já apresenta uma leitura do mundo inevitavelmente precoce e perspicaz, quando brinca com a irmã dizendo que nunca viu uma “filósofa preta”, sucumbe à anestesia da religião. Ou ao conforto da religião, porque algum conforto é preciso.  

Por outro lado, Estela, mesmo que sob a influência aparente do divino, que é quando convive de perto com a religião, não esconde de si mesma o que pensa sobre Deus. Tendo já olhado uma das piores faces do homem, Estela descobre “que Deus [também] era minha mãe segurando uma faca”.

A personagem é uma das tantas filósofas engolfadas pela opressão racista e aporofóbica. “Nunca parar a vida por causa do pranto era uma espécie de milagre”: a própria Estela é um milagre.

FICHA TÉCNICA

Livro: Estela sem Deus
Autor: Jeferson Tenório
Editora: Zouk
Páginas: 208


(*) Gui Coelho é ensaísta, professor e fotógrafo. Especialista em quindins e nefelibata amador.