Dois meses de Adeus às Traças! Mudanças, leituras, revistas, livrarias, bibliotecas, presentes, esperança e muito mais nos relatos dos participantes nesta quinzena.


Arthur Tertuliano

É isso: o carnaval acabou e com ele as desculpas por não ter começado a escrever literatura, por não arrumar o quarto e a vida, por não se matricular na academia, por não demonstrar que você realmente quer aquela promoção no trabalho. 

Mesmo sendo um procrastinador crônico, sinto que estou até bem encaminhado em algumas das principais resoluções e propostas deste ano. Voltei a pegar frilas e estou terminando a revisão da dissertação do sr. K. Abri um pouquinho o coração e estou me permitindo conhecer um cara legal, levar as coisas devagarinho. Deixei de ser muquirana e hoje estou começando a frequentar uma oficina de criação literária, dez anos depois das primeiras que fiz.

Não sei se parece muita coisa, para mim é, mas o ritmo frenético paulistano me induz a pensar que nunca é o bastante. São vários os gatilhos de culpa literária. Você precisa estar em dia com a meta do Goodreads, que avisa quantos você deveria ter lido a essa altura do campeonato. Se o assunto surgir organicamente, por que não divulgar para centenas de pessoas (numa grande reunião do trabalho, digamos) os benefícios das bibliotecas e o Adeus às Traças? Sim, claro que seria de bom tom visitar a livraria charmosa que abriu perto de casa: como sempre disse para mãinha, “não é dieta se não houver tentação”. 

Ainda que para a reunião supracitada eu tenha me preparado durante semanas, acredito que o mais importante desses dias tenha sido a visitinha à Livraria da Travessa. A srta. C me lembrou de como uma boa livreira é capaz de nos apresentar a mundos inauditos, para além da conversinha fiada dos lançamentos.

Tudo começou com a gente comentando “Você tem que ser realmente idiota para”, texto de Cortázar que amo (e já citei na íntegra em nota de rodapé), por conta de uma edição exposta com destaque. Quando me dei conta, finalmente abria O jogo da amarelinha, um livro que admiro platonicamente, e lia o sensível capítulo 7 pela indicação da moça. Quando passamos para Calvino, enquanto falávamos de trechos emocionantes, ela me pôs nas mãos uma edição lindíssima de As cidades invisíveis, com ilustrações de Matteo Pericoli, e foi um momento quase “a parte que falta”: eu precisava daquele livro na minha estante. 

Por meia hora, esqueci totalmente meus princípios e as regras do Adeus. Se não cheguei a comprar os livros em questão, os trechinhos de cada um me deixaram com vontade de engatar ou repetir essas leituras. Afinal, como David Mitchell deixou claro em Cloud Atlas, “a half-read book is a half-finished love affair“.

Livros lidos: O que será, de Jean Wyllys; Black Dog, de Dave McKean. Estou lendo: The Essential Dykes to Watch Out For, de Alison Bechdel; A canção de Aquiles, de Madelinne Miller. Livros que quis comprar: La vuelta al día en ochenta mundos, de Julio Cortázar (ilustrações de Julio Silva); O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar; As cidades invisíveis, de Italo Calvino (ilustrações de Matteo Pericoli).

Como a Bernadette, meu kindle, ficou após os bloquinhos

Bruno Mattos

Em nosso texto inaugural, mencionei a frase de um amigo segundo o qual compramos livros não porque amamos ler (embora amemos), mas porque amamos viver cercado de livros – o que também é muito bom. Voltei a pensar nisso nos últimos dias, ao refletir sobre a atração irresistível que sebos e livrarias exercem sobre mim. Existe nisso algo semelhante aos efeitos de uma loja de brinquedos sobre as crianças – as cores, a emoção da busca, a promessa de novos mundos a serem descobertos. Mas também há algo de outra natureza, mais humana e afetiva.

Estou em processo de mudar de cidade. (Não deveria evocar esse fato para justificar minhas poucas leituras nessa primeira porção do ano, mas é isso que estou fazendo.) Morei durante quatro anos em Foz do Iguaçu e, como não poderia deixar de ser, me afeiçoei a sebos e livrarias da cidade. Chegada a hora da despedida, decidi fazer uma última visita a cada um desses lugares, mesmo sabendo que voltaria de mãos vazias, e isso me fez pensar bastante sobre a minha relação com os livreiros e pontos de vendas. Passados três meses sem livros novos em minha estante (*), percebi que, mais do que sofrer por não comprar nada, sinto falta da relação estabelecida com esses vendedores quase-amigos – o tipo de relação que, creio eu, leva tantos de nós a preferirmos compras presenciais a encomendas on-line, ou livrarias de bairro a grandes redes enfurnadas em shoppings.

A boa notícia (ou má, do ponto de vista de minhas finanças) é que existem paliativos. Por um lado, sou há mais de uma década colecionador ferrenho de discos nacionais. É um hobby cheio de altos e baixos; nos últimos tempos, reencontrei o prazer de fuçar sebos e conversar com vendedores durante horas, para às vezes voltar para casa de mãos abanando. Pode parecer estranho, mas isso é algo bastante aceito – e até bem visto – no meio dos colecionadores de discos, de modo que os meus gastos não cresceram. Por outro, descobri uma certa paixão por revistas antigas. Em minha mudança de Foz, virão junto alguns periódicos que resgatam parte da história da cidade dos anos 1960 para cá.

Sim, sim, já sei o que vocês devem pensando: “Esse maluco está trocando um vício por outro”. Não é bem assim: ao todo, devo ter comprado uma dúzia de revistas, entre publicações argentinas especializadas em crítica literária editadas pela Beatriz Sarlo nos anos 1980 (sim, em Foz isso é fácil de achar) e resgates da memória da cidade. Somados, os preços não devem chegar aos 50 reais. E não pretendo começar mais uma coleção (vade retro), apenas ter algum souvenir da cidade para lembrar desses quatro anos bem vividos. Mas, principalmente, percebo que o maior estímulo era conversar com esses livreiros e livreiras que me acompanharam durante todo o período. No fim das contas, entendi que comprar livros ou viver cercado deles não é tão importante quanto trocar uma ideia com quem compartilha dessa paixão. E embora só agora eu tenha percebido isso, noto que a questão já estava bem resolvida no meu inconsciente e, sem dúvidas, foi a grande motivadora do Adeus às Traças.

(*) Eu comecei mais cedo que os colegas, em dezembro do ano passado.

Livros lidos: Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende. Estou lendo: O romance luminoso, de Mario Levrero; Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk. Livros que quis comprar: nenhum! Livreiros que quis abraçar: são muitos.


Daniel Falkemback

Às vezes, participar do Adeus às Traças pode levar a gente à sensação de derrota, como no último post, em que contei que tinha comprado dois livros. Ainda que tenha meus motivos, não deixou de ser uma recaída. Ao mesmo tempo, o projeto continua a me estimular muito a revisitar estantes, as minhas, as dos outros e as de todos.

Para começar, na biblioteca da universidade, reencontrei Eurípides, do qual reli As fenícias, tragédia da qual partiu a escrita de outro livro que li, esta casa malsã, do Sergio Maciel, a ser lançado agora em março. Apesar de ser um classicista, sempre vi a tragédia grega como algo meio distante de mim, de acesso um pouco difícil. Talvez isso tenha acontecido porque li algumas das peças muito no começo da graduação, sem maturidade o suficiente para isso. Hoje, ainda bem, minha percepção é diferente, e revisitar a tragédia tem sido interessante. Depois, na minha própria estante achei Antígona, do Sófocles, e reli motivado pela personagem de mesmo nome que aparece também n’As fenícias. Fazer essas leituras junto com o poema lírico-dramático do Sergio Maciel foi interessante, mas não entro em detalhes porque vou tratar mais do assunto na minha resenha do livro.

Como me mudei, durante o exercício de recolocar os livros nas estantes, fiz mais outras descobertas, como uma coletânea de textos do anarquista Mikhail Bakunin, intitulada O socialismo libertário, publicada em 1979, e um romance do Dennis Cooper, Closer. São dois livros que sem querer se encontram em pontos em comum, ao menos na minha cabeça. Falo mais do último em especial quando acabar a leitura, quando talvez as coisas fizerem algum sentido.

Também tenho visto mais as bibliotecas dos outros, como a de um amigo meu que me emprestou Preocupações, lançamento do ano passado da poeta Ana Guadalupe, e Cão, do poeta Rafael Mantovani, do qual já tinha lido Você esqueceu uma coisa aqui. São dois autores que, cada um à sua maneira, me interessaram por elementos do cotidiano, do baixo, do que poderia ser chamado de não poético por um leitor tradicional. Essa ação de observar melhor o que existe ao redor de mim em matéria de livros, inclusive na casa dos amigos, tem sido bem valiosa, um resultado do Adeus às Traças já presente na minha vida.

Na biblioteca da universidade onde estudo, também peguei as Novelas nada exemplares, do Dalton Trevisan, que já tinha mencionado no outro post. Agora, já com a leitura terminada, dá para dizer que gostei do livro, o que foi uma surpresa para mim, porque outras obras do autor não tinham me agradado tanto. Enquanto A polaquinha, Em busca de Curitiba perdida e O vampiro de Curitiba me afastaram dele por um provincianismo exacerbado e por uma narrativa meio machista, as Novelas nada exemplares me interessaram por serem amarradas umas às outras por personagens e espaços não necessariamente curitibanos, mas que nos mostram a hipocrisia de uma cidade pequena e conservadora.

Dá para ver que o livro do Dalton e os outros das últimas semanas (inclusive Tolstói, a eterna leitura do ano) me atraíram mais para as estantes ao meu redor e (olha só!) até me distraíram de qualquer lançamento editorial recente ou futuro. Por isso, posso dizer que, não, desta vez não quis comprar livros, só ler bastante mesmo.

Livros lidos: Novelas nada exemplares, de Dalton Trevisan; Preocupações, de Ana Guadalupe; Cão, de Rafael Mantovani; Esta casa malsã, de Sergio Maciel; As fenícias, de Eurípides; Antígona, de Sófocles; O socialismo libertário, de Mikhail Bakunin. Estou lendo: Closer, de Dennis Cooper; Guerra e paz, de Liev Tolstói. Livros que quis comprar: nenhum!


Raquel Toledo

Confesso que comprei. Mas já sabia que compraria, e essa escapadela já estava prevista nos anais do Adeus às Traças. Ainda assim, acho importante registrar que adquiri livros que lerei com meus alunos ao longo do ano. Não são livros necessariamente escolhidos por mim (oi, lista da Fuvest), e muitos já inclusive possuía, mas não a edição ideal para a leitura com jovens pouco dados a textos do século XIX. De qualquer forma, pequenas compras ligadas ao trabalho estão relativamente distantes das compras que fazia ano passado, aquelas por impulso ou desejo de ter novas histórias por perto.

Percebi isso quando, no meio desta semana, fui comprar um presente na Livraria Martins Fontes (uma delícia de livraria na Avenida Paulista, que é uma delícia de avenida, ainda mais nesses dias de garoa tão paulistanos). Foi aniversário de uma amiga querida que, bem sei, gosta de clássicos anglófonos escritos por mulheres. Aproveitei para me testar com um livro que já estava namorando (e se você leu nossa #Quinzena03, você já sabe qual é).

Fiquei uns bons minutos saboreando todas as novas Mulherzinhas, de Louisa May Alcott: L&PM, Zahar, Martin Claret, Planeta, Penguin-Companhia… pipocaram novas edições definitivas e comentadas desse clássico que nunca foi um sucesso de vendas no Brasil. Claro que esse boomzinho editorial veio na esteira da adaptação cinematográfica de Greta Gerwig (sobre o qual já falou aqui Isadora Sinay), mas, ah, é justamente esse tipo de lançamento que eu compraria sem pestanejar se não estivesse na missão do Adeus. Enquanto escolhia uma edição para o presente (e escolhi a da Planeta), me deixei tomar pelo desejo de comprar uma pra mim.

Pois bem, não comprei. A verdade é que não sou grande leitora de anglófonos (ainda mais escritores americanos), e percebi que meu desejo estava muito mais em ter aquele livro do que lê-lo. Assim, fiquei bem apenas em dá-lo de presente e saí da livraria até mais feliz, pensando que se eu quiser ler um clássico escrito por mulheres, alguns estão empoeirados nas estantes de casa (como Frankenstein, acreditam?).

O desejo de comprar nem sempre vem aliado ao de ler, verdade seja dita. Senti isso também quando, no fim de janeiro, fui matar tempo na Livraria da Vila perto da minha casa. Eu estava na ânsia de consumo, com a grana curta, e só queria mesmo ver as novidades (um hábito que, acredito, não vou perder neste ano sem compras). Mas uma coisa me pegou de supetão: os livros da Tag (o clube de assinaturas de livros) estavam expostos e disponíveis para compras e, puxa, alguns títulos são muito interessantes e todos têm projetos gráficos que me fizeram ficar por um bom tempo pensando como seria escrever um texto de comprei mesmo. Todavia, perceber que nenhum daqueles títulos representava verdadeiro desejo de leitura me fez recuar. Respirar fundo, fazer vários stories (ei, me segue: @ratoledo) e só admirar. Nem tudo que é bonito a gente tem que comprar.

E, assim, sobrevivi no jogo por mais uma quinzena.

Livros lidos: nenhum (muitas leituras de trabalho em andamento). Estou lendo: O tradutor cleptomaníaco: e outras histórias de Kornél Esti, de Dezsö Kosztolányi; Diário de um escritor na Rússia, de Flávio Ricardo Vassoler (não inclui aqui as leituras de trabalho, porque a lista é longa demais). Livros que quis comprar: Mulherzinhas, de Louisa May Alcott (de novo), e vááários livros da Tag que estavam expostos na Livraria da Vila no fim de janeiro.