Quando eu tinha 12 anos, ao ganhar de presente uma edição de Mulherzinhas, eu entrei para um clube do qual fazem parte mulheres que vão da ficcional Elena Greco (e talvez sua ambígua criadora?) até a muito real Patti Smith: o grupo de mulheres que descobriu a profissão da escrita com Louisa May Alcott, ou, mais precisamente, com Jo March.
É claro que eu sabia que os livros que eu lia tão ferozmente vinham de algum lugar, a lógica dizia que alguém deveria escrevê-los. Mas o escritor era mais como uma entidade etérea. Alguém vivendo nas nuvens ou num castelo no ar, alguém fora dessa realidade, desse mundo, do círculo das pessoas normais. Eu sabia que alguém deveria escrever livros, mas, ainda assim, isso parecia algo que simplesmente “acontecia” em algum tipo de processo mágico e misterioso. Foi com Mulherzinhas que eu descobri que um escritor é algo que você se torna, que a escrita não é como um processo de psicografia, mas muito mais tentativa e erro, noites em claro, dedos manchados de tinta, editores e rejeições.
Muito se diz de como o gênio é um substantivo masculino. Uma das missões da minha vida é jogar em qualquer conversa semi-inteligente o como não chamamos Joan Didion de gênio, mas estamos preparados para dar o título a diversos escritores muito menos hábeis com palavras (quase todos). A cultura masculina em torno da escrita é justamente a do mito, da entidade mágica, da escrita como processo misterioso e não esforço contínuo, físico, árduo. O clube dos gênios é apenas para homens.
Greta Gerwig é mais uma das mulheres que descobriu isso com Louisa May Alcott. Ou, talvez, quando seu impecável filme de estreia, Lady Bird, não lhe rendeu sequer uma indicação a melhor diretora no Globo de Ouro. De qualquer forma, ela sabe que o gênio não é um lugar de mulher e o processo de se tornar uma artista, de encontrar sua voz, é difícil e pessoal, e é disso que se trata sua versão de Mulherzinhas.
O filme, diferente do livro, não acontece em ordem cronológica, mas começa com as garotas já adultas, Jo tentando a vida como uma escritora em Nova York e lembrando das histórias da adolescência para consolar Beth, que se aproxima da morte. Essa opção transforma o filme em um exercício metalinguístico que destaca, entre todos os muitos temas do livro, a criação artística como central: é a história dessas garotas, mas é também a história de como Jo se tornou uma escritora ao escrever sobre essas garotas. Sobre como ela encontra sua voz ao deixar de se adequar às expectativas que homens tinham de sua literatura e toma a absolutamente radical decisão de escrever sobre mulheres (é adoravelmente irônica a cena em que as filhas do editor se maravilham com o livro que ele rejeitou). A história dentro da história também resolve outro problema dessa adaptação: o livro de 1868 é cativante, mas um tanto engessado, moralizante e antiquado. Ao transformar a história real das March em um romance para garotas, Gerwig permite que a idealização e romantismo da história se tornem a nostalgia natural reservada às memórias de infância.
Outro problema dessa história para o público moderno é a moral excessivamente religiosa: os March são bons protestantes e uma parte considerável das lições que as garotas aprendem enquanto crescem são emolduradas em discursos sobre virtude e modéstia. Abandonar essa linguagem é, por um lado, um acerto de Gerwig, mas por outro tira de momentos centrais do livro sua força emocional. A maior vítima disso é o capítulo “Meg vai à Feira das Vaidades”, em que a irmã mais velha se permite viver a vida de luxo e vaidade a que se sente inclinada, e a percepção de quão perto isso a leva do pecado é o momento fundamental para que ela se torne quem é e faça as escolhas que fará. No filme, essa cena parece deslocada e sua importância para Meg talvez escape aos que não leram o livro.
Outro momento central que soa apressado, e talvez um pouco gratuito, é quando Amy, proibida de ir com as irmãs mais velhas ao teatro, queima o livro que Jo vinha escrevendo. No livro, a cena já oscila entre a dramaticidade adolescente e a ambição real e concreta de Amy, mas no filme, por mais primoroso que seja o trabalho de Florence Pugh, o momento parece pouco mais que mesquinho.
O que é curioso porque, de todas as virtudes do filme, a ascensão de Amy March é a maior delas. A mais nova das irmãs é com frequência tida pelas amantes do livro como nada mais que uma pirralha irritante e competitiva que tira de Jo, a clássica preferida, tudo que ela sempre quis. Mas Gerwig enxerga nela a mesma ambição que há em Jo, porém, desprovida da mesma vontade de confrontar as convenções sociais. Amy é uma figura complexa e delicada: extremamente consciente do que cabe as mulheres nessa sociedade, violentamente ambiciosa, talentosa, mas não genial. Ela faz suas escolhas movida por um misto de orgulho, conformismo e pragmatismo. É Amy que de certa forma compra a liberdade criativa de Jo e, ao enxergar o casamento como uma transação financeira da qual ela tira o melhor possível, a independência de toda sua família.
Gerwig é generosa com Amy de uma forma que a personagem sempre mereceu, mas nunca teve direito. Generosidade para com a história e suas personagens é, aliás, o que molda a maior parte das escolhas criativas da diretora. Este é um filme que ao mesmo tempo dá a suas protagonistas defeitos trágicos e as perdoa por eles; que cria mulheres que falam sempre gritando, todas ao mesmo tempo, atropelando os homens e se compreendendo quase por instinto. Greta tira de um romance um pouco abafado um filme cheio de ar, de espaço, do espaço infinito necessário para que essas garotas, todas as garotas, se tornem quem são. Ele é de uma compreensão profunda de todas as escolhas que, no livro, nos parecem duvidosas, do casamento de Amy ao professor Baher (deliciosamente interpretado por Louis Garrel).
Não é um filme perfeito. Está longe de ser um filme impecável. Mas é um filme que encontra nessas imperfeições o mesmo encanto que suas protagonistas encontram nas suas: a liberdade de se ter uma voz, de fazer as próprias escolhas, de ser quem se é. Greta Gerwig transformou Mulherzinhas em uma obra sobre o processo criativo e com imensa generosidade tornou épico o processo pelo qual quatro mulheres encontram suas vozes. Como diz essa nova e melhorada Amy March: é ao escrever algo que lhe conferimos importância. O Mulherzinhas de Greta Gerwig é um filme importante sobre personagens que vão ser interessantes para sempre.
FICHA TÉCNICA
Filme: Adoráveis mulheres
Direção: Greta Gerwig
Elenco: Emma Watson, Laura Dern, Meryl Streep, Saoirse Ronan, Timothée Chalamet, Florence Pugh
Duração: 135 minutos
Isadora Sinay é cineasta e pesquisadora da obra de Ingmar Bergman. Gosta de gatos, Sylvia Plath, Elizabeth Bennet e tudo que for em preto e branco.
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