Há duas semanas, quatro membros da nossa equipe deram sugestões de contos para leitura durante a quarentena. E esperamos que vocês tenham terminados todos. Mentira. Só queremos fazer mais uma lista. Hoje, na segunda parte, mais contos são recomendados – e alguns costurando temáticas. Que tal conferir as listas de cada um?


André Araújo

“Casa tomada”, de Júlio Cortázar: Parece que, desde 2014, estamos vivendo em um conto do Cortázar. Poderia ser “Autopista do sul”, com a vida cotidiana se ajustando de forma quase imperceptível a uma situação insustentável e um tanto ridícula. Mas agora, trancados em casa e sentindo-nos cada vez mais acuados, talvez seja o caso de repensar um pouco a situação e notar que estamos, de fato, em “Casa tomada”, primeiro conto de Bestiário, seu livro de estreia. Enquanto resolvo meus afazeres, atendo vídeochamadas e procuro receitas na internet, não consigo deixar de pensar nos irmãos que a cada dia perdem um pouco de sua casa para um intruso invisível e aterrador, e que nem por isso deixam de seguir sua rotina tricotando, lendo, fazendo faxina, cozinhando pratos frios para o jantar. As coisas que ficam do lado de lá, agora perdidas, são lembradas com uma melancolia esperançosa, uma mistura de não-precisava-tanto-assim com vai-que-um-dia-volta. A casa, que historicamente serve de símbolo para o conforto privado da vida burguesa, desconectada e protegida da realidade produzida por seus próprios atos, torna-se o espaço próprio de perigo e invasão. A metáfora política – o sem-rosto, que surge subitamente para desestabilizar a existência pacata dos protegidos – não deixa de ser invertida: se em Cortázar éramos expulsos de casa, agora o sem-rosto aterrorizante nos priva do externo, isolando-nos dentro de um espaço que parece ser sufocante. Mas quanto tempo dura até que o externo nos invada e de fato tome nossa casa?

“Sob a água negra”, de Mariana Enríquez: Esse conto produz uma das mais poderosas sínteses presentes na literatura contemporânea: a articulação entre o “horror cósmico”, de origem lovecraftiana, com a realidade histórica e política da América Latina, de suas ditaduras, dos espólios da violência colonial e da exploração material e humana tomada como ordem do dia. Mariana Enríquez, com o seu procedimento de partir de uma imagem potente e desenvolver as linhas que a dão origem e dela se projetam, acompanha uma promotora de justiça que investiga o assassinato de dois jovens de periferia pela polícia. A trama, excessivamente comum para nós, terceiro-mundistas, vira de cabeça pra baixo quando Algo, que residia adormecido no fundo de um canal, um arroio (ou valão, como diríamos no RS), sufocado pelos dejetos e detritos próprios da falta de infraestrutura mínima, desperta faminto por vingança e adoração. Se, em Lovecraft, Os Antigos eram uma metáfora para corresponder a emergência aterrorizante do Outro (que, para o autor notoriamente racista, dizia respeito ao não branco, não ocidental, não eu), aqui eles aparecem como seu oposto, como o grito dos desvalidos, a força dos rejeitados, a nova forma mutante. É um grito político – ou melhor, Cosmopolítico – que, em uma imagem, conecta o sincretismo de nossa tradição religiosa, a festa popular do carnaval e as potências da Terra e de sua exploração com a violência policial, a herança das ditaduras neoliberais, e os dispositivos de exclusão (e submissão) da população urbana, resultando em uma procissão herege, uma marcha (ou carreata?) de celebração fúnebre, um canto de cisne sombrio que escancara a dimensão e a escala dos verdadeiros horrores que assombram a América Latina (aguardem).

“Aqueles que abandonam Omelas”, de Ursula K. Le Guin: Parece não importar o dia ou o contexto, esse conto de Ursula K. Le Guin sempre soa apropriado para o momento da leitura. Publicado em 1974, a autora constrói cuidadosamente Omelas, uma “cidade feliz”, desprovida dos desmandos consumistas do capitalismo, do poder de dominação dos exércitos e dos dispositivos de alienação do clero. Ursula tenta forçar a sua imaginação ao máximo para conseguir criar uma cidade que não deslize para a inocência puritana e desprovida de excitação de uma utopia sem sal, ao mesmo tempo que preserva Omelas do que julga serem as fontes do conflito e da opressão. Mas Ursula esconde, no porão de uma casa, a fonte da alegria de Omelas: uma criança é mantida prisioneira, nua e faminta, sem poder receber qualquer tipo de carinho ou palavra de afeto. É o preço por manter a cidade plena, feliz. Todos sabem da criança, todos se revoltam e sentem nojo, mas aos poucos são convencidos que a satisfação geral vale mais que a vida de uma só criança. Tem algo de romance de formação nesse conto: o processo pelo qual aos poucos notamos as violências que somos obrigados a varrer para baixo do tapete, de modo a conseguir viver com a consciência mais ou menos tranquila sob o regime sócio-político-ambiental no qual nascemos. Em condições normais, a criança permanece como uma lembrança desconfortável, mas, de quando em quando, somos obrigados a entrar no fétido quartinho e encará-la nos olhos. Talvez uma pergunta pertinente para esses tempos de quarentena seja: já que estamos tanto tempo dentro de casa, será que encontraremos o porão onde está presa a criança de Omelas? O que fazer se a opção de abandonar Omelas não é factível? Ou é?


Isadora Sinay

“A conversão dos judeus”, de Philip Roth: nesse conto curto e muito estranho, Ozzie Freeman, um garoto com pendor filosófico que se preparara para o seu bar-mitzvá, chega ao limite. O rabino não é capaz nem está disposto a responder suas dúvidas, e ele precisa desesperadamente de respostas. É a alegoria da prisão que é o dogmatismo religioso, ou do que é realmente se tornar um judeu, ou ainda apenas uma pequena peça de surrealismo satírico.

“O ponto do marido”, de Carmen Maria Machado: é o conto perfeito. Ela incorpora a linguagem das lendas urbanas e um toque do fantástico para falar do machismo como assombração, de corpos femininos como assustadores. Uma mulher tem uma fita verde amarrada em seu pescoço, e esse conto é sua breve e misteriosa biografia.

“O intérprete de males”, Jhumpa Lahiri: é um conto relativamente longo sobre uma família de americanos com ascendência indiana de férias na Índia. Lá eles conhecem um motorista que trabalha também como intérprete em um consultório médico, transformando doenças em algo comunicável. É lírico e intimista, sobre as coisas que ficaram pelo caminho, as fantasias não realizadas e as identidades partidas.


Bruno Mattos

“Cenários”, de Sérgio Sant’Anna: São tantos anos tecendo loas a Sérgio Sant’Anna que sempre suspeito que terei dificuldades na próxima vez em que for recomendá-lo. Nunca tenho. Contista por predestinação, jamais por limitação, Sérgio é mestre absoluto do gênero. Cenários muito possivelmente não é o melhor de seus contos (“O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” vêm à cabeça), mas é o que melhor retrata a sua busca pela perfeição. Nele, um escritor rabisca uma série de inícios enquanto tenta encontrar um clima, uma atmosfera, um cenário, enfim, que viabilize o impacto direto que esperamos de um conto, escorregando a cada tentativa de que “Não, não é bem isso” o que ele procura. Embora para nós, leitores, cada tentativa abortada dê a sensação de que, sim, é bem isso. É que Sant’Anna tropeça na perfeição com demasiada frequência.

“O Capote”, de Nikolai Gógol: Paulo Bezerra, exímio tradutor da versão que li nesta quarentena, conta no prefácio do livro como Dostoiévski afirmou que “Somos todos filhos de O capote de Gógol”. Coisa que, sei agora, Dostoiévski jamais disse, mas não tem problema porque faz todo o sentido. E não apenas em se tratando da geração seguinte de russos, como Dostoiévski jamais afirmou, mas sim de todos os que vieram depois. A combinação certeira de humor, sobriedade, realismo radical, fantasia delirante, sátira de época e universalidade da miséria humana faz com que me faltem hipérboles para enaltecer essa delícia de conto.

“Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luis Borges: Literalmente, sorteei um conto do impecável Ficções para comentar aqui, e como algumas a gente tem que ganhar, sorteei justamente o melhor, ou mais adequado, para o momento (se é que há diferença entre as duas coisas). Nas últimas semanas, tenho pensado como qualquer produto cultural, de revista a podcast, de livro que dá vontade de ser argentino a duendes de jardim, de mantos mapuche a pinturas rupestres, precisará ser ressignificado à luz dessa experiência de quarentena, do medo compartilhado de morrer ou perder as pessoas que amamos. Esse conto, que antes não era sobre isso, agora é. Leia para entender por quê.


Raquel Toledo

“A menina-nariz”, de Liudmila Petruchévskaia: Todos os contos de Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha são, no mínimo, marcantes. Escritos no universo do colapso na URSS, as histórias trazem o universo de possibilidades mágicas que o período suscitava nas mentes mais criativas da época. Nesse conto, Petrúchevskaia passeia pelo imaginário popular (e folclórico) russo para contar uma história de amor um tanto macabra.

“Ovos fatais”, de Mikhail Bulgákov: Ainda na seara russa, indico qualquer coisa que Bulgákov tenha escrito, mas aproveito este espaço para lembrar a versão contista do autor de O mestre e Margarida. No volume Coração de cachorro e outras histórias, o tradutor e estudioso da obra de Bulgákov (e recém-falecido, infelizmente) Homero F. de Andrade reúne alguns contos longos (novelas) nos quais o autor narra de forma nada tradicional a vida sob o regime stalinista. Atenção: se você procura uma ficção histórica, esse texto não é para você. Bulgákov lança mão de recursos não realistas – no caso de “Ovos fatais”, a ficção científica toma conta da vida moscovita – para mostrar o insólito na jovem República Soviética logo após a morte de Lênin e o início de um período de disputa por poder.

“Violeta”, de Miguel del Castillo: Conto do primeiro livro do autor, perpassa a história de Miguel Angel, ativista desaparecido durante a ditadura uruguaia, e, principalmente, de Violeta, sua mãe. Delicado e interessante, o texto entrega aos poucos, para o leitor, sua costura. Quiçá um dos meus textos brasileiros contemporâneos preferidos.


Simone Vollbrecht

Eles herdarão a Terra, de Dinah Silveira de Queiroz: Dinah foi uma romancista, contista e cronista brasileira. Nasceu em São Paulo em 9 de novembro de 1911 e foi a segunda mulher na Academia Brasileira de Letras, tendo uma produção literária reconhecida e premiada a partir de títulos como A muralha. Mesmo sendo das pioneiras da ficção científica brasileira, suas obras no gênero seguem desconhecidas pelos leitores. Seu conto “Eles herdarão a Terra” surge pela primeira vez na Revista Jóia, em 1957. Após, é republicado na coletânea que leva seu título pela editora GRD, novamente mais tarde na outra coletânea de contos de Dinah, Comba Malina. Republicada recentemente pela Editora Plutão em ebook com acréscimo de outros textos, “Eles herdarão a Terra” é um bom primeiro mergulho na ficção científica brasileira da década de 60 e um ótimo representante da Primeira Onda, trazendo a temática dos extraterrestres invasores que buscam dominar a terra, tão popular à época.