Desta vez, temos dois poemas inéditos de Priscilla Campos, nascida no Recife. Ela é jornalista, crítica literária, poeta e doutoranda em Literatura Hispano-Americana na Universidade de São Paulo (USP). Publicou, em poesia, o gesto (nosotros editorial) e, em ensaio, Nenhum muro à altura do peito (Edições Macondo).


eu e você nos sentamos no chão

e descobrimos que as nossas mãos podem juntar
as coisas com pouca sincronia e muita eficiência
imagina nós dois e a organização de uma guerra
eu afio facas e punhais, você encoraja os soldados
escrevo estratégias enquanto você monta mapas
danço quando perdemos a primeira batalha
você diz que ter fé é como abraçar nossas mães

saio à noite para implantar bombas no território inimigo
você revisa as decisões de Maquiavel para não chorar
e chora mesmo assim
(finalmente aprendeu que as lágrimas
são as nossas primeiras armas)
dormimos abraçados durante o dia
e fingimos coragem durante às madrugadas

aos domingos você acorda cedo e grita
a gente vai derrotar tudo em breve
eu te digo que temos braços na cabeça e por isso
nossas mãos são instáveis mas ainda podem
colecionar muitas vitórias
espalho bilhetes pela casa
não machuque os dedos antes da última batalha
cuidar das nossas incontáveis falanges é o que resta

agora, a guerra vai acabar e dizem que o vírus vem
eu perdi a conta dos nossos sucessos em campo
você me convence que a única solução está aqui:
alguns banhos juntos
água quente e línguas
sento no chão de novo em protesto ao fim
você dá risada do meu deboche diante da morte de milhões
e eu imagino que seja assim a sensação dos pés firmes
depois do pior dos terremotos


brinquedos selvagens

1.

faz dias que trabalho na confecção de uma placa de acrílico com peças descartáveis em formato de animais. o desenho de cada espécie é o meu ponto forte, mas os encaixes possíveis entre eles, eu ainda não conheço.

procuro ajustá-los de acordo com:
classificações biológicas
os que eu mais gosto
os que eu mais desejo me tornar
os que são mais feios
os que não têm pulmões

2.

quando pronta, a placa de acrílico funcionará como método de organização de meus conflitos. por exemplo, entrego as aves de rapina (duas asas) para você e deixo os mexilhões (duas conchas) comigo; digo que ambos são “orgulhos” e que você deve cultivar o seu longe do meu e assim nenhum animal sairá ferido

3.

o mais difícil, depois dos encaixes concluídos e desfeitos, será não desenhar também algumas mãos. venho obcecada pela chance de empunhar as facas e de subir as montanhas com os dedos cheios de anéis. mas sei que só os animais formam a imagem-antídoto para o nosso limbo dos encurralados; a sistematização da guerra pode ser a única saída depois de tanto tempo tentando ilustrar o que morre antes mesmo de conceder o corpo à crueldade do que não se vê