Mais um daqueles happy hours improvisados de um trabalho novo com o pretexto de melhorar sinergia entre colegas por contrato e tempo determinado. Seria mais um daqueles se não tivesse partido das conversas fiadas, entre uma cerveja e outra, para temáticas em comum. O alento de encontrar uma pessoa minimamente interessante – que não fala tão somente das atividades do dia ou de como conheceu quem indicou para aquele trabalho exatamente, para falar de viagens em comum, o mesmo gosto pela cozinha, não necessariamente sobre as planejadas, disposição da pia ou a boca de fogão favorita, mas do ato de cozinhar quaisquer receitas nunca feitas antes, com invencionismos acrescidos, e por música. É reconfortante se deixar contagiar por um gosto musical e ser íntimo quando é uma canção, interpretada por diversas vozes, em uma distância de anos.

“O amor me pegou”

Uma daquelas horas felizes pós-jornada de trabalho serviu para despertar um interesse. A impossibilidade de dividir um Uber naquele momento, dado a distância entre suas casas, poderia servir como uma luz de emergência se acendendo automaticamente. A luz acendeu junto a um misto de sentimentos, pensamentos, vontades, desejos. Não tardou (não mesmo), ficou para a mesma noite a troca de mensagens instantâneas e aqui seria mesmo com a diferença de segundos entre a enviada, a recebida, a réplica, a tréplica. A palpitação arrítmica a cada lampejo da luz da tela de LED acompanhada pelo nome. A troca de mensagens era comedida no horário comercial, ninguém precisava – ou deveria, ou poderia – saber o que acontecia. Mas aconteceu. Entre uma pausa e outra, existiam os breves encontros, amorosos sem toque de colegas a conversar sobre o dia quente. Apesar de não levantar suspeita, era curiosa essa proximidade, e quem tivesse dúvidas poderia em uma retórica simplesmente descobrir: “Não é para isso que servem happy hours? Para criar sinergia entre colegas?” Aquela espiada no Instagram Stories era puro combustível. Risos tão sinceros traziam a leveza de uma promessa. De várias promessas: encontros, noites compartilhadas, carinhos íntimos sem pudor, mais tempo.

“Saio na noite à procura
O batidão do meu coração na pista escura”

Corações acelerados pela madrugada na troca de fotos entre uma declaração carinhosa e outra acentuada no erotismo – ainda no campo da imaginação e sustentado pelas ilustrações libertinas daqueles pixels criptografados de ponto a ponta, e o torpor após pôr em prática com uma mão a segurar o celular e a outra a simular a presença. As pausas vespertinas não eram suficientes. Mais perto de concretizar aqueles planos, a saudade crescia a cada encontro efêmero cheio de arrepios. Pelos do braço não são sutis. Manter em segredo tem suas vantagens: alegria genuína nos breves encontros, confissões desmedidas, explosão de hormônios e tesão. Este sigilo pode ser um simples aceno à privacidade, ninguém precisa saber de ninguém, como uma fagulha de um passado um tanto quanto traumático. É possível ignorar o passado, não apagá-lo, e é plausível que o que passou não venha assombrar essa nova história, esse presente de desejo. O que pode se imaginar, e ainda ficar no campo da especulação, é um tempo paralelo a essa história agora correndo para alcançá-la para permanecer no hoje antes de se tornar ontem.

“Será que meu sonho influi?
Será que meu plano é bom?”

As noites planejadas minuciosamente e as fotografias de cunho erótico para elevar a expectativa criaram uma promessa grandiosa para, em seguida, tornarem-se um gatilho para ansiedade. O aviso foi claro: “trabalhos suspensos por tempo indeterminado devido à quarentena”. Nem as pausas teriam mais. Quebrar o isolamento para atravessar a cidade, que separava sem o menor remorso, não era uma ideia para se por em prática; não houve treino de convivência além-trabalho e não era plausível descrever manias em mensagens para se prepararem para uma eventual mania que destruiria a relação construída com a ajuda de um belo pacote de dados e wi-fi. A programação jornalística dá os ares de terror para as consequências.

“Será que é no tom?
Será que ele se conclui?”

Os dias se estenderam dentro deles mesmos, longos além do necessário, numa rotina que tardava a dobrar a esquina da noite. O sexting, o mais próximo do sexo que poderiam ter, tornou-se uma obrigatoriedade como de relacionamentos de longa data. Os assuntos definharam tão logo a terceira semana chegou, não havia nada de novo entre cozinhar ou ouvir uma música que lembrava das semanas antes. De onde vinha essa sensação de distanciamento sendo desde o começo o que mais acendeu essa vontade surgida num daqueles happy hours; teria se esvaído porque essa cumplicidade bem guardada na privacidade das instant messages antes poderiam ser descobertas, e nesse momento dificilmente faria diferença. Era o segredo o motivo desta paixão tão ardente que proporcionava os sonhos mais eróticos, lascivos e explícitos desde a adolescência. Quiçá a narrativa perdeu seu eixo e fora trocada por um exercício de precaução para não causar falsas expectativas em mensagens mal interpretadas.

Se pego, ui
Me entrego e fui

Todavia, não tinham culpa do desinteresse mútuo repentino – ou, melhor dizendo, para não piorar a situação, empenho pífio de sustentar essa relação não consumada, da maneira clássica, antiquada, que seja; em meio a uma pandemia. A ansiedade antes era gerada pelo encontro ardente tão planejado, hoje é apenas gerada por factoides sobre a maior peste da humanidade no século XXI. O imediatismo da contaminação retratada por jornais e portais e da troca de mensagens gerou um excesso que empurrou o resquício de interesse de lado. Ainda tentariam, como todos envoltos em paixão ou amor, resgatar o desejo inicial cada dia mais próximo de um protocolo a ser cumprido – pois não se deve quebrar promessas – do que da vontade primitiva de outrora. Seria uma punição divina, uma brincadeira celestial de mau gosto, terem esperado tanto por um momento que lhes foi tirado como forma de castigo? “Aproveita o momento”, “se joga nas oportunidades”, “não deixe escapar”. E quando não se espera, toda e qualquer chance, assim como a frágil esperança, permeia por entre os dedos como água corrente direto para o ralo.

“E as gatas extraordinárias que
Andam nos meios onde ela flui”

Quase impossível não imaginar as ruas vazias, as calçadas sem mesa, os ratos saindo dos bueiros para reivindicar seu espaço no Estado democrático, os fantasmas mais tímidos dançando a coreografia do post mortem girando nos postes de luz ironicamente à luz do dia, ecos natimortos de janelas abertas, o farfalhar das folhas tão estridente quando um pássaro pousa, o vento num zunzum de fofoca chocando com as sirenes em sintonia sinfônica, as pessoas sozinhas com pensamentos idênticos sem nunca terem se conhecido que talvez não tenham a chance de se conhecer mesmo; a morte respirando o mesmo ar. Quando tudo isso passar, o que mais passou?

“Tenho que pegar, tenho que pegar
Tenho que pegar essa criatura”