Para hoje temos três poemas inéditos de Rafael Mantovani (São Paulo, 1980). Ele é formado em Linguística pela USP e sempre trabalhou como tradutor. Também é autor dos livros de poemas cão (Hedra, 2011) e você esqueceu uma coisa aqui (Macondo, 2019; Enfermaria 6, 2020). Hoje vive entre Berlim e o Porto.


acolhimento

benditas sejam também as falas desnorteadas, as tentativas
o verbo diferente do outro
bendito seja o gosto duvidoso
tudo que deixamos no meio pra que os fins um dia justifiquem
aquilo que escolhemos e protegemos da chuva
benditos sejam inclusive
estes quarenta minutos de idiotice reparadora
estes quarenta anos
o brilho de cada explosão bem-sucedida
benditas sejam principalmente as plantinhas
nas janelas, porque não são ambiciosas
e bendita também seja qualquer ambição, mas não porque justifique
e agradecer também as migalhas
porque nem tudo são só migalhas.


finalmente

narcisistas por desespero, por falta de opção
esticando braços pra espaçonave nos ver
enviando fotos pra quem
pra orbitar imediatamente a esfera de atenção
e uma lista de motivos

quem sabe alguém lá se interesse, considere
que nós valemos a pena
que somos diferentes
que conosco vai ser diferente
que agora entendemos, finalmente

quem sabe nos puxem pra fora
da enchente, nos elevem
justifiquem
o nosso longo peso

quem sabe nos justifiquem, nos entendam
nos sequem, nos alimentem
quem sabe nos expliquem, nos incluam, nos preservem
nos devorem
nos elejam.


qualquer objeto redondo

pelo menos continuamos lavando nossas fronhas
de quando em quando
quando não há coisas mais urgentes pra fazer
ou justamente porque há tantas

de vez em quando
no sonho alguém nos dá permissão
pra morrer simplesmente, sem informar o motivo
e amanhecemos descansados, como se só pra nós fosse sábado
e estivéssemos de pijama no local do acidente
mas fora do acidente

de repente
podemos ficar aqui mais um pouco
abraçamos
qualquer objeto redondo.