Por Breno Kümmel (*)

A porta fechada do elevador devolvia um reflexo fosco dela com o filho no colo. A primeira descida à rua após o final da quarentena tinha sido estranha, o mesmo caminho tantas vezes cruzado com o pequeno antes de março não transmitira a sensação de liberdade e sim um algo meio alienígena, qualquer alívio envenenado pela mesma paranoia corrente dos últimos meses. O menino balançava o herói meio agigantado com as duas mãos, às vezes acertando de leve o ombro dela, tão nem aí pra essa história toda de vírus quanto para o estresse de minutos atrás com a outra criança no parquinho.

Era o exato trajeto mil vezes vigiado pela sua janela da sala, às vezes com o pequeno no colo apontando algum caminhão na tentativa de distraí-lo de qualquer birra, às vezes sozinha, ponderando o quanto mais duraria o confinamento, vendo as pessoas lá embaixo sem nem usarem máscara, na coragem da própria estupidez. Ali embaixo finalmente a sensação tinha sido a de que percorria o espaço de uma maquete, parte de si como que se olhando ainda lá de cima, pequenininhos ela e o filho, a mãozinha dele estendida pra dela tão maior, os calcanhares de plástico do boneco raspando no concreto.

Era um dia nublado, feioso, dos que o marido pedia que fosse ele a descer pela preguiça de sempre de passar protetor solar, mas tinham combinado que ela desceria primeiro, ele sempre mais tranquilo em ficar em casa. Ele também tinha um otimismo esquisito, de suposta fundamentação histórica, que a peste negra teria trazido o fim do feudalismo e a atual poderia encerrar o ciclo de burrice escrota que havia tomado o planeta inteiro, que o século poderia assim ter outro começo. De início ela argumentava que nem durante a desgraça as pessoas haviam mudado, 

(os vizinhos de cima enchendo a casa de amigos ou parentes todo fim de semana para as lives sertanejas, o pessoal do prédio escondendo risadinhas diante do marido de máscara e luvas para pegar a entrega do supermercado no térreo, os sogros reclamando da frescura e absurdo de proibirem visitas, afinal não era o neto nem o filho com o histórico de problemas respiratórios)

que dizer depois, dada a memória prodigiosa do brasileiro. Mas a insistência dele, logo ele desde sempre ótimo na troca de ideias, fez com que ela percebesse que havia algo de resistência emocional naquela certeza inconvincente. Aquela vida e aquelas notícias, dia após dia, só lhe seriam suportáveis se acreditasse que haveria ao final qualquer recompensa, como se a vida funcionasse mesmo assim. Ela aprendeu a calar como era óbvio que o mundo seguiria normal; piorado, apenas. Não faria sentido trabalhar para que o pequeno vivesse aqueles meses enfurnado com mais outro adulto totalmente desconsolado.

Ele estendia aquele entusiasmo estranho até mesmo ao menino, repetindo que as crianças naquela fase se desenvolvem muito intensamente, que seria outro Felipe a ir no escorregador, na areia, até mesmo com os au-aus da praça. Essa parte ela não duvidava, acompanhando o espanto repetido por vê-lo entendendo cada vez mais o mundo (mesmo que reduzido ao interior de um apartamento de dois quartos), interagindo nas brincadeiras de forma cada vez mais complexa, o vocabulário em expansão desenfreada. Talvez o fato de ele não ter reclamado nada de ela descer primeiro fosse indício de que não acreditava de verdade nas próprias palavras, ou, diria sua irmã, sempre puxando o saco do cunhado, apenas outro indicativo de que ele era um homem que cumpria sua palavra.

Pensava se seria sincera sobre o passeio quando finalmente subisse, se algum dia aquela porcaria de elevador chegasse: o êxtase do filho ao reconhecer o espaço da praça, há tanto tempo dormente na consciência, a força súbita com que soltou sua mão pra percorrer o gramado, soltando gritinhos impossíveis pra qualquer adulto; tudo isso dissipou quase nada da inquietude dela, mas ela chegou a sorrir naquele leve voyeurismo de alegria infantil que caracteriza boa parte da parte boa de ter filhos. Ela pegou o boneco que ele deixou cair no caminho e seguiu atrás. Ele não foi direto pra areia, aproveitou antes o resto da praça, a calçada, a cerca de arame do espaço para cachorros, as árvores, pressionando as palmas das mãos contra os troncos e olhando pra cima como se tivesse força para balançá-los e ver as folhas sacudindo.

Em poucos minutos se estabeleceu boa parte do tédio amansado que era normal ao acompanhá-lo naqueles passeios. A quantidade de pessoas circulando por lá era a mesma de antes de março, nenhuma com o ar estonteado que ela certamente transparecia: a maioria já tinha deixado de levar a sério a ameaça do vírus há tempo, por necessidade econômica ou escrotidão ideológica, achando bobagem a cifra de mortos anunciada noite após noite. 

Olhou para a lanchonete favorita deles ali na esquina e pensou se estaria fechada pelo horário ou de vez, pela janela via que mesmo os que desciam a passeio dificilmente entravam nos comércios, num meio-termo que na verdade  —  o menino então começou puxar a portinhola do parquinho, e ela correu atrás dele para ajudá-lo num possível desequilíbrio. Ele logo entrou e correu para o topo de um pequeno relevo; agachou-se e enfiou os dedos na areia, como se quisesse agarrar o chão todo. Ignorou por completo os dois meninos ali dentro, mais próximos do balanço, um maior e outro menor que ele; e lá se ia a ideia de que nesse tempo todo ele sentia falta do contato de outras crianças. 

Em algum momento daquela correria o boneco foi jogado longe, e o fascínio em fazer montinhos com as mãos não impediu que percebesse o menino menor se levantando com um intuito óbvio. Tudo foi rápido demais para que ela pudesse impedir, o menino pegando o boneco abandonado por dez segundos, seu filho correndo até ele em fúria súbita, o outro adulto lá na sombra saindo do celular só com o meio grito de cuidado que ela conseguiu soltar, e seu filho puxando o cabelo do outro com a mão direita, sem soltar com o grito e o choro do outro nem com o boneco largado de novo no chão. 

Correu até os dois e enfiou o dedo dentro do punho fechado do filho, gritando solta, solta Felipe, solta. O menino menor chorava com a boca toda aberta, baba escorrendo, o grito mais e mais estridente. Quando conseguiu destrinchar a mão e afastar o filho podia ver fios de cabelo loiro do outro entre os dedos. Era uma mania horrível de quando ele era menor, de bem antes da virada do ano, desaparecida bem antes do confinamento. O outro adulto só alcançou o próprio filho quando já estavam separados, ela olhou para ele e pediu mil desculpas, constrangida mesmo sabendo que era meio que uma fase, meio normal, e que era impossível ter o controle de tudo, explicou que tinha tempo que aquilo não acontecia e estava um pouco destreinada nos passeios, não fez por mal, ele não entende ainda o conceito de emprestar o brinquedo.

O homem pegou no colo sua criança que ainda berrava chorando e disse que na verdade o filho dela era bem esperto, já que não dava pra fazer o mesmo com ele. Ela pensou em defendê-lo, dizendo que o fato do outro ser menor não tinha como figurar no raciocínio, mas ter de argumentar aquilo parecia absurdo. Agachou outra vez e pegou o boneco caído no chão, indo para a saída. O filho nem protestou, nem mais tão interessado no herói.

Até sair da praça foi repetindo que aquilo não se faz, machucar o menino, que ele não ia perder o boneco, etc., toda aquela ladainha que se repete esperando efeito por acúmulo. Atravessada a rua, pôs ele no chão, mas depois de meia dúzia de passos ele pediu colo de novo, e ela atendeu. Parecia ter absorvido que algo ruim tinha acontecido. Menos mal. Pensou em nem mencionar o evento ao marido, ele talvez esperasse apenas coisas boas e depois de tanto tempo merecesse pelo menos isso, contaria do retorno da velha mania quando fosse relevante, num outro passeio, seu otimismo meio fraco

(numa noite insone ele contou que da vez mais no início em que descera com uma das últimas das máscaras mais caras e alguém na entrada do prédio lhe dissera que ele ali não deveria estar usando aquilo pois faltava material para os médicos nos hospitais, ele respondeu que se lhe mostrassem algum médico que não tivesse votado no Bolsonaro ele entregaria todo seu material de graça. Após um silêncio ela perguntou se ele havia respondido mesmo isso, ele falou que não, pensou na hora, não foi nem na volta, mas ficou calado)

talvez precisasse disso. A porta do elevador enfim abriu, de dentro saiu um casal idoso e ela recuou exageradamente para trás, no reflexo que desenvolvera nos últimos meses. Riu um pouco de si, e entrou com o filho ainda no colo, pousando-o no piso depois de apertar o botão. Foi ao olhar para ele por cima que entendeu o que escutaram no parquinho, do homem furioso, que o filho dela seria esperto porque o dele não tinha como revidar, não é pelo outro ser menor, pois o Felipe quando era daquele tamanho tinha já aquela mania, ou do dela ser maior, pois era uma questão de quem pegasse o outro primeiro, e sim do cabelo em si, Felipe puxara mais a genética dela que do pai, o cabelo que nem o do tio e do avô maternos, crespo, curtinho, de negro mesmo, não tendo crescido naqueles dois anos e poucos meses para que alguém conseguisse puxar. Ele brincava com o boneco fazendo-o andar saltitante em cima do corrimão do fundo do elevador, e ela tinha mais uns andares de subida para pensar como contaria tudo ao marido. 


(*) Breno Kümmel vive em Brasília e é escritor.