Por Gabrielle Bellot, tradução de Naná DeLuca.

As recentes manifestações de J. K. Rowling sobre transsexuais causaram revolta na comunidade trans e em seus leitores. Até atores que participaram dos filmes baseados na saga Harry Potter, como Daniel Radcliffe e Emma Watson, se pronunciaram contra os comentários da autora. No site Literary Hub, a escritora Gabrielle Bellot escreveu sobre a transfobia de Rowling e sua relação pessoal com a obra. O artigo a seguir foi traduzido por Naná DeLuca, jornalista, educador popular e escritor, autor do romance O sexo dos tubarões (ed. Patuá).


De tempos em tempos, eu me habituei à obrigação de ter que defender minha “mulheridade” quando pessoas públicas declaram que mulheres transgênero não são mulheres “de verdade”. Às vezes, quero ficar quieta, evitar o estresse de mais um longo debate com aqueles que, no melhor cenário, me chamam de “senhor” e, no pior, de “estuprador que deve ser executado” — pois toda mulher trans, segundo essa lógica, não passa de um homem que quer se enfiar nos vestiários femininos para fazer coisas nefastas. É emocional e espiritualmente desgastante debater a própria identidade; às vezes, só quero sair das redes sociais, dar uma longa caminhada ou abraçar alguém que amo para ter apoio, aninhando-me em meu próprio e pequeno porto seguro, onde, pelo menos por algum tempo, ninguém me acusa de ser uma aberração, uma pessoa pervertida, uma abominação que não pertence aos anais desta Terra.

Outras vezes, quero berrar meu urro bárbaro dos telhados. Quero gritar não, vai se foder, você não vai me diminuir. Eu sou quem sou, isso é fundamental para a minha existência, e eu não escolhi ser assim. Eu nunca fingiria ser algo que me trouxe tanta perda e dor. Quero gritar que abri mão de tanta coisa quando me assumi trans — meu país natal, qualquer esperança de uma boa relação com a minha família, velhos amigos, qualquer possibilidade de uma vida simples — mas, em todo caso, persisti, porque transicionar era essencial para mim, e não uma decisão qualquer. Eu tinha que me assumir, ou não poderia continuar vivendo, porque a dor, a música dissonante de viver uma mentira, era insuportável.

Nesses momentos, quero berrar até chorar. Sou delicada, afinal; gritar com os outros não me é natural e é comum eu me desculpar por minha própria raiva logo que começo. Eu não gosto de odiar, mesmo que eu seja objeto de ódio. Mas, às vezes, o fogo da minha raiva é incontrolável, e eu só quero gritar por toda a noite estrelada como um cometa ardente.

No geral, contudo, eu fico entre esses extremos: calmamente frustrada ao perceber que mais uma vez minha identidade é tema de um debate casual e crasso. Apesar do fato de que todos — tanto pessoas cis quanto pessoas trans  — têm uma identidade de gênero, pessoas trans são apenas forçadas a estarem mais conscientes disso, já que nossa percepção de gênero entra em conflito com a forma como outras pessoas se referem a nós e nossos corpos. Nesses momentos de decepção silenciosa, queria que todos pudessem entender isso, mas sei que a próxima ladainha transfóbica de algum famoso está sempre à espreita.

O capítulo mais recente nesta saga veio de J. K. Rowling, autora que eu venerava. No início de maio, ela debochou de um artigo que falava de “pessoas que menstruam” — uma escolha de palavras que traduz a realidade de que nem toda mulher cis menstrua, ao passo que alguns homens trans, sim. Em vez de refletir sobre o gesto inclusivo do termo, Rowling se enfureceu, afirmando que a expressão nega a realidade do sexo biológico — e sugeriu que o termo invalida a legitimidade de relações entre pessoas de mesmo sexo. “Apagar o conceito de sexo priva muitos da possibilidade de discutir parte significativa de suas próprias vidas”, ela tuitou. “Se o sexo não é real, não há atração entre o mesmo sexo. Se o sexo não é real, a realidade vivida por mulheres globalmente é apagada”. Pessoas trans, ela afirma, não estão apenas apagando mulheres e o casamento igualitário. Nós estamos também, como sugere um artigo que postou, “aterrorizando” lésbicas cisgênero ao entrar em espaços femininos, quando simplesmente deveríamos parar de nos iludir sobre sermos mulheres.

Esse não foi de jeito nenhum o primeiro flerte de Rowling com a retórica antitrans. No fim do ano passado, ela atraiu os holofotes internacionais por ter defendido Maya Forstater, uma notória transfóbica britânica. Forstater, pesquisadora e feminista “crítica do gênero” — um termo popular no Reino Unido que se refere à corrente feminista que questiona e constantemente rejeita abertamente a inclusão de identidades transgênero[1] —, não teve seu contrato renovado em um grande think tank, depois que seu empregador soube de seus posicionamentos transfóbicos virulentos. Seus colegas de trabalho denunciaram que a transfobia de Forstater gerava um ambiente de trabalho hostil, em especial por sua recusa em respeitar a identidade de gênero de pessoas trans e se referir a elas com base no gênero ao qual foram designadas no nascimento. Forstater processou o think tank, mas perdeu quando a juíza decidiu que “a visão da Reclamante, por sua natureza absolutista, é incompatível com a dignidade humana e com os direitos fundamentais de todos”.

A sentença levou uma Rowling furiosa ao Twitter. “Vista-se como quiser, por favor”, ela escreveu. “Chame-se do que quiser. Faça sexo consensual com qualquer adulto que queira você. Viva a melhor vida que puder em paz e segurança. Mas tirar empregos de mulheres por afirmarem que o sexo é real?  #IStandWithMaya #ThisIsNotADrill.”

Foi um tapa na cara. Por muito anos, eu amei a saga Harry Potter que, para mim, conjurou um mundo onde pessoas de todos os tipos poderiam viver juntas e serem aceitas. Agora, eu aprendi, pessoas como eu não pertencem realmente a este lindo reino.

Eu perdoara antes seus flertes com o feminismo trans-excludente. Em 2017 e 2018, ela “curtiu” publicações e tuítes declaradamente transfóbicos, incluindo um tuíte que afirmava que mulheres trans não passam de “homens de saias”. Eu gostava tanto da humanidade dos livros Harry Potter de Rowling que estava disposta a deixar de lado esses comportamentos anômalos; com certeza, o dedo dela acidentalmente apertou “curtir”. No entanto, a defesa de Forstater em 2019 revelou, indubitavelmente, que ela não é uma aliada da comunidade trans.

Para alguns, os tuítes de Rowling podem parecer inofensivos, mas, lendo as entrelinhas, o tom é condescendente e sugere que pessoas trans podem vestir as roupas que quiserem e podemos usar a linguagem que queremos, só que, na verdade, vivemos uma espécie de ilusão boba que pessoas como Rowling mera e educadamente toleram.

E os posicionamentos de Forstater extrapolam em muito “afirmar que o sexo é real”. Forstater se recusa a usar os pronomes corretos de pessoas trans, uma prática que machuca, na melhor das hipóteses, e, na pior, pode levar à violência. Em 2018, Forstater foi além e declarou que:

Algumas pessoas trans fazem cirurgias cosméticas. Mas a maioria preserva os genitais do nascimento. A igualdade e segurança de todos deve ser protegida, mas mulheres e meninas perdem a privacidade, a segurança e a justiça se machos puderem entrar em vestiários, dormitórios, presídios e equipes esportivas.

Esse é o posicionamento antitrans mainstream, segundo o qual pessoas como eu são perigosas e inadequadas para determinados espaços, mesmo que eu corra muito mais perigo se, enquanto mulher, entrar em um vestiário masculino. É verdade que, de vez em quando, fico nervosa quando estou em um vestiário feminino (porque estou sempre nervosa), mas é àquele lugar que pertenço. E, quando estou lá, ninguém me olha duas vezes, porque tenho “passabilidade” e é ali onde parece que devo – e devo de fato – estar. 

Defender Forstater e atacar a linguagem inclusiva é defender a segregação de pessoas trans e negar-lhes o gênero, nos dizendo que não merecemos determinados espaços. Longe de serem inofensivos, os tuítes de Rowling são uma espécie de cavalo de Tróia do sentimento transfóbico, expondo serenamente seu apoio à intolerância violenta de Forstater. Que seja essa a causa que Rowling elegeu como foco, à luz de protestos internacionais contra o racismo e a brutalidade policial — nos quais muitas pessoas LGBTQ estavam presentes — é ainda mais absurdo e míope, sugerindo uma obsessão fanática por pessoas trans. Pessoas que desprezam profundamente um grupo ou outro — homofóbicos, racistas, transfóbicos — frequentemente parecem incapazes de se desvincular desses grupos, orbitando ao redor deles como luas raivosas, e não conseguem funcionar a não ser que nós estejamos lá para que nos humilhem.

Após seus tuítes em dezembro, alguns conservadores declararam alegremente que liberais “cancelaram” Rowling, atacando-a. No entanto, a verdade é mais lamentável. Foram seus fãs transgênero, como eu, que foram de fato “cancelados”, porque a autora que admiramos por tanto tempo revelou, finalmente, que não é uma fã nossa.

*

Uma tarde, quando minha mãe voltou de uma viagem a Londres, ela me deu um livro. Harry Potter e a pedra filosofal era o título. A capa mostrava um menino de óculos que parecia desconfiado, em pé diante de uma enorme locomotiva vermelha como pimenta, cuja chaminé soltava no ar uma nuvem de fumaça estrelada. Como eu era uma criança caribenha profundamente nerd, que leu um pouco sobre alquimia e, logo, já sabia o que era a pedra filosofal, fiquei intrigada. Eu gostei da expressão confusa do menino e a promessa de aventura daquele trem constelado; ambos sugeriam uma jornada, e eu adorava ler sobre elas, talvez porque como filha única que vivia no topo de uma montanha, eu era solitária e livros que prometiam um escape do castelo azul de minha solidão me empolgavam.

Quando abri o livro, fui fisgada. Eu amava o fato de que, no limite, o livro era sobre encontrar o caminho em um mundo estrangeiro. Eu imediatamente pedi para minha mãe o próximo livro, sem me dar conta de que já havia um terceiro. Quando o quarto livro foi publicado, eu estava em uma viagem com meus pais a Barbados. Depois de comprar uma cópia com um livreiro de olhos arregalados, eu li com fervor fanático noite a dentro. No hiato entre a publicação do sexto e do sétimo, li e reli os livros quatro, cinco e seis — A ordem da fênix mais do que todos — várias e várias vezes, frequentemente segurando o livro com uma só mão enquanto jantava. Eu devorava os livros menores que complementavam a saga principal, Animais fantásticos e onde habitam e Quadribol através dos séculos, e assisti todas as paródias de rap da turma de Hogwarts no youtube e os musicais Puffs e A Very Potter Musical. Eu nunca enjoava.

Era um universo literário arrebatador, que dialogava comigo de maneiras sutis enquanto criança multiracial. O marrom suave da minha pele significava viver em um tipo de zona cinzenta da etnia, na qual eu poderia ser entendida de formas diferentes dependendo do país (na Dominica, eu era “misturada”; nos EUA, um país muito mais obcecado por designar categorias raciais rígidas, estranhos me chamavam negra ou hispânica). Por isso, eu entendia em parte a dor que Hermione sentia quando “sangues puros”, como Draco Malfoy, a atacavam por ser “sangue ruim”, uma expressão pejorativa e racista no mundo mágico para se referir a pessoas de famílias trouxas (não mágicas). O livro explicitamente desvela essa retórica supremacista, demonstrando que o pedigree mágico ou o parentesco em nada influenciam o poder e a capacidade de alguém como bruxo ou bruxa. Hermione vai além e, no último livro, apropria-se da expressão chula e afirma: “Sou sangue ruim com muito orgulho!”

E os livros me ofereciam um escape, especial e de peito aberto, como jovem menina trans que, na época, não compreendia inteiramente o que significava ter essa percepção de si — a ideia inquestionável de que eu me sentia errada ao ser tratada como um menino ou vivendo como um menino e o quanto eu queria, desesperadamente, acordar uma manhã e descobrir que eu era uma menina. Por me sentir dessa forma, em um mundo tão mágico, eu pensava, alguém como eu não chamaria a atenção. Se na vida real eu me sentia claustrofobicamente presa a uma ilhota, um mundo em que se pode casualmente alterar a aparência e transfigurar o próprio corpo parecia me dar uma passagem para um lugar ao qual eu, também, poderia pertencer. Significaria muito para mim ver uma personagem explicitamente trans nos livros, mas eu também entendia que seria um dos elementos menos chocantes, mais um fragmento mágico comum naquele mundo bruxo.

Anos após a conclusão da saga, foi ficando mais fácil sentir que os livros apoiavam pessoas LGBTQ, porque Rowling continuava revelando detalhes novos e curiosos sobre o universo de Harry Potter. Em 2007, por exemplo, Rowling declarou que Alvo Dumbledore, o icônico diretor de Hogwarts, “é gay”. Enquanto alguns fãs ficaram compreensivelmente decepcionados por isso não ter sido exposto nos romances, a revelação parecia um poderoso manifesto do apoio de Rowling aos seus fãs LGBTQ.

O fenômeno se intensificou em 2016, quando ela declarou que Remo Lupin, personagem proeminente que sofre da condição estigmatizante de se transformar em lobo na lua cheia, era na verdade um símbolo LGBTQ. 

“A condição da licantropia de Lupin é uma metáfora para doenças que carregam estigma, como HIV e AIDS”, ela escreveu em Histórias de Hogwarts: proezas, percalços e passatempos perigosos. Mesmo que a simbologia LGBTQ seja silenciada na série, eu senti, cada vez mais, que os livros tinham um lugar para alguém como eu.

Anos após a parte final, Harry Potter e as relíquias da morte, ser lançada, eu me assumi. Eu vivi em agonia por duas décadas, sabendo que eu me atraía por pessoas de qualquer gênero e, também, que eu queria (profundamente) que as pessoas me vissem e me reconhecessem como mulher. Mas a Dominica era um mundo onde mensagens evangélicas sobre o pecado da homossexualidade vinham arbitrariamente tanto de pastores nas rádios quanto do primeiro-ministro. Eu estava assustada e não sabia o que aconteceria comigo se revelasse esses desejos profanos. Em minha pior fase, quando já fazia faculdade na Flórida, quase tomei veneno, pensando que se eu não pudesse viver como a mulher que eu queria ser, não poderia viver de forma alguma, pois a dor era grande.

Enfim, em vez de me matar, eu me assumi, sabendo que não poderia mais voltar para casa. Escolhi ficar nos Estados Unidos, ser eu mesma, não voltar para casa e viver uma mentira dissonante, asfixiante. Doeu muito, doeu demais, perceber o quanto havia perdido — mas a alegria exultante ao me dar conta que eu poderia finalmente viver minha verdade foi maior que qualquer dor. Como Lupin se sente livre quando encontra bruxos que o aceitam como é, eu me senti livre e visível pela primeira vez.

*

Os tuítes de Rowling comprovam algo perturbador, mesmo que não surpreendente, sobre sua filosofia: sua empatia, tão à mostra em seus livros, tem limites. As mensagens que cunhou em Harry Potter sobre a aceitação e a rejeição de ideologias supremacistas, simplistas e desumanizadoras estão muito distantes das mensagens que Rowling apresenta nas redes sociais, onde ela casualmente se coloca contra uma das minorias mais vulneráveis do Reino Unido e do mundo.

Mas Rowling certamente não é sua saga de livros. Posso não compactuar plenamente com o famoso — ou infame — postulado de Barthes de que o autor morreu, o que significa avaliar uma obra de arte sem considerar o artista por trás dela, mas sei que não são necessariamente os posicionamentos de Rowling que movem o universo de Harry Potter. Mas quando um artista adorado nos decepciona, é difícil ver sua obra como antes. Receio que parte da magia da saga desapareceu para mim.

Mas também sei que ainda há um poder maravilhoso e encorajador nos livros. “Eu sou o que sou e não me envergonho disso”, diz Hagrid, um dos personagens mais adorados da série, em Harry Potter e o cálice de fogo. “‘Nunca se envergonhe’, meu velho pai costumava dizer, ‘tem gente que vai usar isso contra você, mas não vale a pena se preocupar com eles’”. Escolho, no fim, me agarrar a essas palavras, na esperança de que Rowling, que as escreveu, um dia escolha verdadeiramente ouvi-las.


[1] No Brasil, a mesma corrente é chamada de “feminismo radical”.

Publicado originalmente no Literary Hub.