Imagine um narrador um pouco menos cínico que o Brás Cubas, mas igualmente espirituoso. Imagine agora uma cidadezinha e uma teia de relações parecida com a de Caetés. Conseguiu? Pois bem, é mais ou menos desse jeito que dá para fazer uma panorâmica de Marcoré, romance de Antonio Olavo Pereira publicado em 1957: o Caetés narrado pelo Brás Cubas.

Esse livro é uma daquelas pequenas obras primas que, por uma razão ou outra, acabou indo parar mais para baixo do baú do que devia. Encontra-se aí junto com outros, como Domingo à tarde, de Fernando Namora, e Mundos mortos, de Otávio de Faria. Não foi esse o caso na ocasião da publicação, no entanto. Recebeu o Prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras naquele ano, e a julgar pelos elogios do verdadeiro panteão que assina a orelha do livro, foi calorosa a recepção da obra: Antonio Candido, Gilberto Freyre, Antonio Houaiss, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.

O enredo é bastante simples, porque não é aí que se encontra o sumo do livro. Este está quase todo no narrador, que é quem conduz em primeira pessoa o relato.

O que se acompanha no livro é a história de uma família numa cidade do interior, especialmente ao longo do crescimento do menino Marco Aurélio, desde a gravidez de sua mãe até sua chegada na mocidade. Vivem todos os membros dessa família numa única casa: o narrador; Sílvia, sua mulher; o casal de sogros, Seu Camilo e D. Ema; o menino, chamado Marcoré pelas empregadas que também ali moravam. Tem-se a impressão de se tratar de um sobrado ou de uma casa-grande não tão grande, de qualquer modo com algum ar aristocrático, ainda que esmaecido. Seu Camilo é dono de terras fora da cidade e também do cartório local, comandado pelo genro, que é oficial-maior. Isso explica sua proeminência pública, ao mesmo tempo tão palpável e tão desimportante. O microcosmo regional está cheio desses pequenos potentados locais: não são coronéis, mas tampouco polichinelos. Constituem figura de relevo, como atesta praticamente todo o elenco de suporte do romance, adejando ao seu redor em relação de semi-dependência.

Ema é uma amargurada, a epítome da sogra viperina e oposto de seu marido, que é a bonomia encarnada. Aos olhos do narrador a sogra vive a sacudir-se como uma cobra presa, neurastênica, recorrendo ao refúgio da vitimização toda vez que é contrariada. É uma figura que causaria pena se antes não despertasse cólera. Parece genuinamente afligida por algum mal psicológico, tão repentinos seus rompantes e tão radical a transfiguração de feições e gestos. Mas, como somos reféns do olhar do genro, só podemos intui-lo.

Sílvia, esposa e filha, vive no meio dessa eterna contenda em potencial. É cândida e cordata: presa de uma devoção quase servil ao marido, de um amor caloroso ao pai e uma relação muito pedregosa com a mãe. Por ocasião de complicações durante a gravidez, fez uma promessa em nome do filho: não manteria mais núpcias com o marido se Marco Aurélio viesse saudável. Nascido este, aferrou-se Sílvia ao seu intento, disposta, inclusive, a tolerar com discrição o adultério do marido.

Nesse pequeno teatro de inferno, suavemente doméstico e familiar, o menino Marcoré é gestado, e nele também as reminiscências do narrador. Aquele e estas em simbiose. Há aí uma derivação de Tolstoi, aproximando-se da famosa abertura do Anna Karenina, palpável quando o narrador expõe sua visão da vida: “Jamais aprofundei as raízes de minha vida com propósitos de reforma interior. Não me considero nem melhor nem pior que os outros. Creio que afinal somos todos infelizes, cada qual a seu modo.” (p. 33)

O sumo do livro, como dissemos, é sua narração. Ou, em outros termos, a voz do narrador-personagem inominado. É o seu prisma sobre os fatos, antes dos fatos em si, o que constitui a identidade do livro. Isso e a elegância de sua escrita.

Comecemos por essa última.

A contenção verbal que caracteriza Marcoré lembra a prosa poética apesar da extensão de romance (o melhor de dois mundos!), e ganha em expressividade pelo arremate contundente dos períodos curtos. A escrita foi toda organizada para arrancar mais sentido com menos texto. Vide a passagem onde o narrador, sozinho em casa e aguardando a ligação do filho, escreve suas reminiscências:

Eis que a vela se reduz a coto no castiçal de prata. A luz é fraca, já não logra alcançar o vulto da cristaleira. O rolo se aproxima até às bordas da mesa. É certo que Marcoré não mais chamará. Irei para o quarto tateando nas paredes. Aceito o desafio contido no silêncio, recuso-me a acender a luz. Nada mais que minúscula chama no pavio penso. O rolo já me comprime, só a custo vejo o papel à minha frente. Vou levantar-me e tomar a direção do quarto. Se gritar, será porque esbarrei em algum dos meus mortos. (p. 205)

Tudo no livro encontra-se num passado ao mesmo tempo remoto e próximo, dum ou doutro modo irremediavelmente perdido. Coberto por um véu de melancolia. Se houvesse uma competição de melhor usuário de pretéritos mais-que-perfeitos, tenho certeza que Antonio Olavo Pereira levaria. É com esse tempo verbal cheio de fidalguia que ele nos coloca nesse passado meio etéreo e impreciso.

Uma tal forma, no entanto, não vem desacompanhada de um teor igualmente pungente. A narração é o veículo do lirismo do narrador, inescapavelmente colado a Marcoré. O filho é a estrela em torno do qual todos os planetas familiares giram, e particularmente o paterno, pois foi a promessa feita em nome do filho que lhe interditou as núpcias da esposa, eventualmente levando-o aos braços da amante, Emiliana. A descoberta desse adultério, não por Sílvia mas por Marcoré, precipitou o rompimento entre pai e filho, atirando o narrador no abismo de melancolia em que se encontra, enviuvado já.

Marcoré ocupa o centro da narrativa. É ele quem estabelece o antes e o depois, as duas partes que formam o livro. O narrador chega a dizer: “Não podia imaginar que o nascimento de Marco Aurélio viesse trazer consequências tão fundas à minha vida.” (p. 90) O filho representa a graça e a danação do narrador, como remói este em seus escritos, em conversa com a esposa morta: “Melhor com ele ou sem ele?” (p. 200) Logo recua, horrorizado: “Não personalizo o erro maior de nossa vida em Marcoré – seria um pensamento monstruoso” (p. 201), mas pondera e não escapa à conjectura: “Mas é certo que ele foi um instrumento de discórdia em nossa família. A bem dizer, deu consistência a uma situação ambígua que se mantinha por meio de pequenos artifícios.” (p. 201) Termina como que amaldiçoando os céus: “Culpa nenhuma sobre ele, mas sobre o nosso amor, que lhe deu vida.” (p. 201)

Há um componente edípico em Marcoré, mas contado pelo lado de lá, da perspectiva de Laio. As memórias que o narrador produziu só podem ser, portanto, as reminiscências de uma tragédia já finda, por isso mesmo nem mais tragédia direito. É como se ele devesse ter morrido no ápice climático, para completar sua catarse, mas tivesse ficado vivo, frustrando-a. Vive agora à sombra disto, remoendo num certo fastio que, pela ausência de “propósitos de reforma interior” declarada pelo narrador, tornam-no figura quase patética, por isso mesmo duplamente melancólica.