avrahamEm junho de 1941 tropas do II Reich invadiram a Polônia. Àquele tempo a cidade de Vilna- hoje na Lituânia- chamava-se Wilno e pertencia ao país invadido. Como em todos os outros lugares invadidos a mando de Adolf Hitler, lá os judeus foram severamente perseguidos- para serem mortos ou enviados para campos de concentração e guetos. Um jovem judeu que habitava essa cidade escondeu-se por algum tempo dentro de uma lareira, mas acabou sendo preso. Mais tarde fugiu do gueto para o qual foi enviado, e alistou-se como partisan para lutar contra os alemães.

Poderia ser a história de um filme qualquer, ou só mais uma anedota sobre o Holocausto. Mas acontece que esse jovem judeu havia publicado seu primeiro poema em 1934, e fora parte do grupo dos “Jovens de Wilno”- artistas e escritores iniciadores do modernismo polonês. Mas Avraham Sutzkever- esse é o nome do poeta sobre o qual tudo isso se trata- não escreve em polonês: é um dos maiores nomes da poesia ídiche do século XX.

Nascido em Smorgon- na época Polônia, hoje Bielorrússia- em 15 de Julho de 1913, descendia de uma linhagem de importantes rabínos e chassidins. Sua família fugiu para a Sibéria durante a I Guerra Mundial, e de lá indo para Wilno em 1922. Lá formou-se no ginásio, freqüentou o Séder (a escola religiosa judaica), juntou-se ao movimento escoteiro ídiche e começou sua carreira literária, tendo publicado seu primeiro poema em um jornal de literatura, em 1934- como parte dos “Jovens de Wilno”.

Durante a ocupação alemã da Polônia escondeu-se, como eu já disse, na chaminé de sua casa- onde escreveu o poema ‘A Peste’/’Rostos nos Pântanos’. Seu esconderijo não foi exatamente efetivo, e, feito prisioneiro, foi enviado para o gueto de Wilno.
No gueto ele traficou livros e armas para dentro, além de ensinar poesia ídiche. Em 12 de setembro de 1943, por uma brecha na grade, ele, sua esposa e mais alguns escaparam para as florestas.

Pouco depois ele e um amigo, o também poeta Shmerke Kaczerginsky, alistaram-se como partisans e lutaram na guerra. Toda a fase da vida de Sutzkever durante o período do nazismo ficou registrada em mais de 80 poemas, muitos cujos manuscritos originais foram encontrados há pouco tempo- Sutzkever os tinha reescrito de memória, mas julgava os originais perdidos.

Depois da guerra ele viveu em Moscou, em Lodz e, em 1947, imigrou ilelmente para a Palestina Britânica, que logo tornar-se-ia Israel. Um ano depois fundou o ‘Die Golden Keyâ’, um jornal literário em ídiche. Esse jornal foi um importante instrumento para o renascimento da língua ídiche como idioma literário.

Hoje, aos 96 anos, é um dos últimos poetas ídiches, e um dos maiores entre estes. Seus poemas avant-garde com formas perfeitas e rimas incomuns eram rejeitadas por muitos tradicionalistas, mas alcançaram renome e reconhecimento mundiais (tanto quanto um poeta ídiche o pode fazer). De brinde, dois poemas que eu traduzi do ídiche (por isso a tradução pode não estar exatamente primorosa):

Serei culpado?

— Serei culpado, devo pagar pela culpa?
E para quem: o presente ou o passado?
— Que importa, seu tolo, se há uma culpa,
Talvez não seja sua — mas você deve pagar!

— Fui eu criado porque o quis?
Pense a respeito, por favor, e guarde seu escárnio!
— Não pensarei em nada, não pergunte o que, quando,
E não baseie sua fé em espinho algum.

— Seremos eu e o destino um só ou dois estranhos?
Se dois, mostra — E eu o espancarei!
— Decida-se. No instante da sua dor
Você o vê nos guardas que o cercam.

Trilhas de Cinza

Eu esquento o chá com suas cartas:
Meu único tesouro.
Finas linhas de cinza restam,
Ainda brilhando, a brasa
Que só eu posso ler, posso perguntar:
Eu esquento o chá com suas cartas,
Meu único tesouro?

E que o vento seja mudo como uma tumba!
E que minha sombra não se mova!
Um sopro—
E toda a sua beleza restauradora
Irá se revolver de ciúmes
Em todas as estadas.

Quão cara você me é em linhas de cinzas,
Quão brilhante você morre em rastros de cinzas,
Que só eu posso ler, posso perguntar
Eu esquento o chá com suas cartas,
Meu único tesouro?

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