Li 1984 já faz algum tempo, em 2007 para ser mais exato. E, no que minha memória ainda não deixou difuso, lembro de uma história original sem contar assustadoramente bem fundamentada e que se tornava mais verossímil a cada dia que assistia televisão, abria o jornal ou navegava pela Internet.

Porém, lembro também que tive minhas ressalvas em afirmar que era a melhor obra que já havia lido, os “orwellianos” que não me levem a mal, achei o livro estupendo, mas sempre que pensava sobre como a distópica realidade era fundamentada, descrita e pormenorizada, me ficava um quê de artificialidade que, embora não me impedisse de forma nenhuma de apreciar o livro, me incomodava um bocado.

Procurei saber mais sobre o autor, olhar mais sobre o momento histórico que viveu e de que forma as raízes da ficção se encontravam com o solo fértil da realidade, e descobri fatos muito pertinentes para entender a obra de Eric Arthur Blair, mais conhecido como George Orwell.

Fato é que essa resenha se refere ao livro A revolução dos bichos, do mesmo autor e cuja leitura fiz recentemente, já munido de um arsenal de saberes significativamente maior e mais capaz do que aquele de que dispunha em 2007. De antemão, já faço a minha mea culpa: essa resenha nada mais é do que um esboço de interpretação que carece de uma sorte de aparatos teórico-metodológicos que, mesmo que a empobreçam em uma série de sentidos, não a descaracteriza nem a desqualifica, já que suas pretensões são muitíssimo mais modestas que quaisquer pesquisas acadêmicas que certamente já foram escritas sobre essa magnífica obra.

Sem mais delongas, A revolução dos bichos é um livro inegavelmente alegórico, que conta a história de uma fazenda na qual os animais que lá vivem resolvem, a sugestão do leitão Major (na minha cabeça uma versão mais sisuda e menos caricata do Oolong, do desenho Dragon Ball, sem tirar a famosa boininha verde-pinheiro com uma estrela vermelha), iniciar uma revolução contra o jugo humano. Galinhas, gatos, ratos, lebres, cavalos, cachorros, ovelhas, cabras, patos e porcos iniciam um levante que expulsa os homens da fazenda e instaura o animalismo, ideologia em que se baseia a construção de um governo gerido pelos próprios animais.

Fiquei estupefato com tamanho absurdo, temendo o que viesse em seguida. Mas antes que pudesse dar continuidade ao livro, fiquei alguns dias sem pegá-lo na mão, o que foi crucial para que eu refletisse sobre os significados de uma obra cujo plot é contar a história de um levante animalesco contra a autoridade humana. Recordei-me prontamente de 1984 e foi então que tudo ficou mais palpável, nada que se possa dizer epifânico, mas certamente interessante: George Orwell foi uma pessoa que vivenciou uma série de eventos históricos peculiares, em que o abuso de poder, cúmulos de absurdo e horror em guerras, ideologias repressivamente autoritárias e excludentes, para não dizer subversões e perversões de valores tão intensamente que era quase impossível que esse turbilhão não fizesse ao menos algumas pessoas se questionarem sobre o que estava acontecendo.

O que Orwell fez foi justamente usar sua argúcia literária para deter-se intelectualmente sobre toda esse turbilhão. Não quero aqui dizer a que se referem suas alegorias, já que não creio que apenas uma leitura da obra seja suficiente para determinar “quem é quem” e “porque é esse e não aquele”.

Os dois romances de sua autoria que li, já supracitados, equivalem, a meu ver, a uma decantação da realidade, uma dissecação dos elementos políticos, sociais e comportamentais que pujantemente pulsavam em sua realidade, a exemplo de um experimento científico de um modo mais ou menos bizarro, em que as “realidades ficcionais” que ele cria servem de laboratório para que ele compreenda uma equação que imprimiu dolorosas marcas em sua geração. Ao escrever, ele parece querer recompor o caminho que levou as coisas até onde elas chegaram, ele parece querer refazer os passos da humanidade (não generalizando) até aquele ponto em que ele viveu, para poder entender o que estava ocorrendo.

Nesse modo de conceber a literatura dele, me fiz repensar sobre as minhas impressões de artificialidade, que havia encarado a contragosto na primeira leitura que fiz dele: ela era lógica, fazia parte do processo de criação e significação do que ele escrevia, faz todo o sentido, já que é através da recriação dos eventos e da evolução deles que Orwell se pretende entender o que estava havendo. E não só isso, já que as situações e personagens do livro são ao mesmo tempo causticamente alegóricas e perturbadoramente possíveis e verossímeis dentro da abstração literária que ele cria, sem que, com isso, ele deixe de dar pinceladas caracteristicamente humanas aos tipos que povoam suas distopias e histórias.

Trabalho de gênio, tenho que admitir. Pano para manga de muita pesquisa, acadêmica ou não, que já existem e que ainda estão por ser feitas, e que uma resenha tão curta como essa nem pretensiosamente pode esgotar. Coube aqui somente a instigação dos leitores, da obra e do mundo.