As Armas Secretas, livro de contos de Julio Cortázar, que chega ao Brasil esse ano com um atraso imperdoável, é considerado a espinha dorsal de sua faceta de contista, contendo duas obras-primas de sua carreira: As Babas do Diabo e O Perseguidor.

Todavia, esta obra não é um experimento, ou melhor, não é algo que foi testado de diversas formas como em outras obras do autor (A Volta ao Dia em 80 Mundos e Último Round), é uma mistura de narrativa, tempos e improviso com as palavras e gêneros. O escritor argentino era fã de jazz e assim como a música que admirava, suas palavras seguiam um antipadrão de quem conhece cada tempo e virada e mesmo que role um deslize, haverá uma engrenagem pronta para ser posta em cima daquilo proposto.

E como funciona esse improviso, afinal? Cortázar é um desconstrutor das histórias, em O Jogo da Amarelinha, seu antirromance, é evidente esse talento nato e aqui a desconstrução funcionará por forma da transformação da narrativa, através de metalinguagem e finais inexprimíveis.

Finais esses que são evidenciados em “Cartas de mamãe” onde a literatura fantástica soa como principal vertente apresentada no cotidiano de suas personagens sem que soe sobrenatural a principio no espaço (Paris) e tempo (presente e passado em choque) que aparentemente estão, mas encerra desalinhado e atemporal; desarmando o leitor e deixando-o às suas conclusões. Será que o medo e os pesadelos são ilusões? Como Cortázar disse em O Jogo da Amarelinha: “Paris é uma metáfora”.

Entre as muitas maneiras de se combater o nada, uma das melhores é tirar fotografias, atividade que deveria ser ensinada desde muito cedo às crianças, pois exige disciplina, educação estética, bom olhos e dedos seguros.

Em “As babas do Diabo” vemos a dura batalha de começar a narrar uma história, ou melhor, que história e com que voz: primeira pessoa, segunda pessoa ou terceira pessoa. A metalinguagem da escrita metamorfoseia na função da fotografia, transformando palavras em imagens estáticas, porém vivas, na busca da verdade dentro do real. Baudrillard dizia que a melhor maneira de mentir é dizer a verdade e a única maneira de matar o real é com o real, ou seja, o fantástico – e metafísico – apresentado é uma realidade disfarçada – enganadora e o embate continua entre a objetiva e subjetiva: seria a fotografia o olhar do fotografo ou uma mera imagem mais delével que uma lembrança? Estamos ao limite do significado de “ver” pelas palavras. Esse conto serviu de inspiração para Blow-Up de Antonioni que de maneira ardilosa usou a fotografia da película para abrir o olhar e tentar casar o texto e a imagem proposto por Cortázar.

A cumplicidade entre história e leitor se fortalece em “Bons serviços”, onde aquele que lê tem a impulsividade de querer interferir na narrativa para impedir que madame Francinet seja vítima do que acontece ao seu redor. Diálogos e despistes marcantes para provocar o leitor. Enquanto em “As armas secretas” tormentas atacam seu personagem principal e angustiam aqueles que acompanham sua trajetória.

Eis que chegamos ao máximo do improviso literário com “O Perseguidor” que conta a história de Johnny Carter (inspirado no jazzista Charlie Parker) um músico de irrepreensível técnica e poeta. Essa obra-prima declara em alto e bom som, como um solo de jazz, que o abalado das estruturas da arte, seja escrita ou musical, é um exercício para conceber um novo tom às descobertas diárias. A análise de um estado dentro de seu ser: marido, trabalhador, músico, etc; tudo mesclado, todo o conhecimento que se adquiri é raso e pode ser redescoberto, inventado, irrompido até o fim da inspiração, até o fim do material em que se trabalha em cima, ou melhor, até o fim do nosso limite criativo quando cremos que tudo está igual, mas pode ser mudado.

A grata surpresa desse lançamento é a tradução que, por excelência, trouxe a voz do escritor para o português sem destoar seu significado ou encher de notas de rodapé. E sua capa desenha perfeitamente o sentido da obra: as novas formas.

As Armas Secretas é recomendado àqueles que não tem medo do cotidiano desconhecido e das fantásticas realizações, reais ou irreais, que podem aparecer no trajeto da vida. Cortázar expandiu o horizonte da palavra até o limite, agora, como leitor, devemos dissecar e desconstruir, evoluir e involuir, descobrir a inimitável essência do trivial e recolocá-la em um novo patamar além do conformismo.