Em seu livro ‘O judeu não-judeu e outros ensaios‘ Isaac Deutscher comenta ter ouvido de alguns judeus israelenses de origem européia que os sefarditas- judeus oriundos do Norte da África- são mais parecidos com os árabes do que com os próprios judeus e que, nos primeiros anos de Israel, tinham medo de que, em uma crise, eles se aliassem aos muçulmanos e não a seus compatriotas.

Isso era um óbvio exagero mas ilustra o preconceito antigo, e que perdura até hoje, existente ente os próprios judeus. A. B. Yehoshua, autor israelense, aponta para esse preconceito em seu ‘Viagem ao Fim do Milênio’.

O livro nos traz a história de uma sociedade comercial extremamente bem sucedida entre dois judeus, Ben-Atar e seu sobrinho Abuláfia, e um árabe, Abu-Lufti, durante o século X, as portas da conclusão do primeiro milênio do mundo cristão. Abuláfia percorre a África buscando mercadorias, que são avaliadas e levadas para a Europa por Ben-Atar, que também é o financiador de tudo, e então Abuláfia- que se mudou para a França depois do suicídio de sua esposa- encarrega-se de vendê-las no norte. Uma vez por ano encontram-se na Espanha, para partilhar os lucros e para o reencontro de velhos amigos que são.

Os negócios encontram-se ameaçados, porém, quando Abuláfia encontra uma nova esposa, a senhora Esther-Miriam Levinas, judia ashkenazita ortodoxa, que, ao saber que o tio de seu marido tem duas esposas- fato que pouco tempo antes fora proibido por um édito rabínico alemão, além de ofender Esther-Miriam em sua feminilidade- declara seu repúdio à sociedade.

Após uma série de estratagemas por parte dos três sócios a sociedade acaba sendo dissolvida. Ben-Atar decide-se, porém, a não deixar isso acontecer, pois não pretende deixar que seus negócios e, muito menos, sua relação com o sobrinho, sejam abalados. Contrata um rabino espanhol, compra um navio e, junto com uma tripulação muçulmana, seu sócio, o rabino e o filho, uma série de mercadorias e um escravo negro, leva consigo suas duas esposas para a Europa, não apenas para provar que seu duplo casamento está dentro da lei, mas também para mostrar para a nova esposa de seu filho que ele é capaz de amar verdadeiramente e da mesma maneira as duas .

Isso, porém, não é feito sem medo. Não apenas o mar era perigoso, mas a proximidade do ano mil, quando os cristão esperavam a volta de Jesus Cristo, apresentava um risco para judeus e muçulmanos. A pior coisa que encontram, porém, é o desprezo dos judeus europeus, que os consideram bárbaros e corruptos, distantes da lei mosaica.

Yehoshua narra uma história complexa, cheia de reviravoltas e surpresas. Mas ele vai além de uma história meramente bemc ontada: ele nos faz sentir a intensidade dos sentimentos das personagens, sendo quem por vezes é difícil saber se o que parece mais correto é a ofensa da senhora Esther-Miriam ou o amor de Ben-Atar.

Com um estilo mais distante de seus dois colegas, Grossman e Oz, Yehoshua é um dos grandes nomes da atual literatura israelense e, com essa obra, mostra todo seu poder de evocação da realidade- mesmo que a disfarce com a distância temporal.

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