Rovena St. e Bessfort Y. eram amantes, logo após a queda da Iugoslávia, do regime comunista albanês e a Guerra dos Bálcãs. Dentro em breve Slobodan Milošević iria a julgamento em Haia. Os dois amantes, no entanto, acabaram mortos.

Não riam, alguém dissera. O mundo é mais complexo do que parece‘. Uma frase escutada por um dos investigadores do caso, nos tempos em que estava no colégio e que combina de modo assustador com o caso em que ele trabalha.

Misturando essa linha investigativa frágil- construída a partir de fatos dúbios, testemunhas que ou não sabem nada ou que são tendenciosas, suposições e sonhos narrados por fontes indiretas- com a complexa história recente da região que origina seus protagonistas, o albanês Ismail Kadaré escreveu ‘O Acidente’, um livro tão envolvente quanto confuso.

O livro se divide em três partes: na primeira se apresentam as circunstâncias do acidente e se levantam as suspeitas de um assassinato político (Bessfort era membro do Conselho Europeu e especialista em assuntos balcânicos), bem como as medidas adotadas pelos sérvios e por seus rivais albaneses. Constroem-se aqui algumas argumentações quase políticas, que são extremamente engraçadas e que demonstram a fragilidade dos estados recém-criados à epoca dos fatos narrados. Kadaré chega a inserir alguns vislumbres metaliterários, citando a si próprio ao falar sobre o julgamento de Milošević.

Em seguida temos a história de Bessfort e Rovena. Uma história nebulosa e conflituosa, que traz a mente os complexos casos de amor do escritor tcheco Milan Kundera. Bessfort é um homem dominador e complexo, do qual Rovena parece depender profundamente- mesmo quando tem suas aventuras, uma com um estudante eslovaco e outra com Lulu Blumberg, uma pianista que ela conhece em Londres e que é uma peça chave na reconstrução de tudo o que aconteceu. A história tecida por Kadaré, porém, possui algo de terrível que nunca abandona a narrativa, mesmo em seus momentos mais leves.

Por fim, a terceira parte, substancialmente menor do que a segunda, em que nos o investigador persegue as últimas respostas, algo que se tornou mais obsessão do que trabalho. Uma tarefa que ele mesmo parece reconhecer como fútil, apesar de perseguí-la de modo incansável (ou não, por vezes somos defrontados com sua estafa, mesmo que ele continue em frente).

Apesar de curto, a leitura de ‘O Acidente’ pode se tornar difícil, especialmente para quem não está familiarizado com a história dos Bálcãs nos anos 90. Além disso a ordem cronológica não é respeitada na maioria das vezes, sendo que é comum que o mesmo fato seja narrado mais de uma vez. Mas é justamente essa complexidade toda o grande atrativo do livro. Como numa história policial, a investigação é construída aos pedaços, e o leitor é convidado a montar os dois quebra-cabeças apresentados por Kadaré- o do amor de Rovena e de Bessfort e o da política desse novo pedaço da Europa.

O Acidente

Ismail Kadaré

Tradução de Bernardo Joffily

232 páginas

R$ 50,00

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