Por Emanuela Siqueira (*)

Em 1905, na época com um pouco mais de vinte anos, a escritora inglesa Virginia Woolf publicou no jornal The Guardian um breve ensaio sobre o que chamou de o valor do riso, defendendo que crianças e mulheres são temidas pela simples possibilidade de rirem, por serem conscientes das afetações e irrealidades, podendo rir – e despertar o riso – de forma honesta. Woolf chega perto do final do ensaio dizendo que esse temor era um dos fatores de mulheres não serem bem aceitas nas atividades ditas liberais, como a escrita, por exemplo. Em abril de 2019, em um artigo da Folha de S. Paulo, a pesquisadora brasileira Mariella Augusta Masagão afirmou que a poesia contemporânea brasileira havia se tornado, em suas palavras, sisuda e hermética, apontando que um dos fatores seria a dificuldade de escrita diante da existência de homens como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, exemplos de poesia divertida, acessível e canônica segundo os seus parâmetros.

Veludo violento, livro de estreia de Natasha Tinet, vencedor do segundo lugar no prêmio da Biblioteca Nacional de 2019 na categoria de poesia, corrobora as ideias sobre o riso e o cômico de Virginia Woolf e engrossa o coro contra a superficialidade da tese de Masagão sobre a poesia contemporânea brasileira. Idealizando uma poética masculina, mesmo encontrando diálogo nos versos de Natasha, Mariella acaba por soterrar a veia cômica tão particular na poesia de autoria de mulheres, principalmente a produzida hoje no Brasil por nomes que vão de Angélica Freitas a Julia Raiz. O riso e a sátira são como estéticas de não pacto, ao estilo de Hilda Hilst que, ainda no começo dos anos de 1980, afirmava a necessidade ética do/da escritor/a em não pactuar com o que chamava de “engodo armado para ludibriar as pessoas”.

Não há pactos em Veludo violento porque a voz poética que sai do corpo de Natasha Tinet é autoirônica e honesta a ponto de deixar a/o leitor/a paralisado diante do reconhecimento, por exemplo, da imagem de uma enfermeira que provoca uma carnificina diante da veia fininha de uma (im)paciente. Como afirma Virginia Woolf, o riso está entre as palavras e não por baixo delas. Os versos em Veludo violento são dispostos um seguido do outro, moldados pela superfície cômica, porém preenchidos pela crueza ritmada de uma tragicidade corriqueira. Para compor a cena que desperta o riso entre os erros e acertos das enfermeiras, figuras populares e nomeadas como Christiane F. contrastam com outras apenas sinalizadas como Manuel Bandeira – “aí, sim, voum’embora/ remendada de bandeide”.

A recusa em não pactuar com a espera de uma poética lamentativa diante da dor acontece desde a montagem de Veludo violento. Contemplando três momentos, o livro começa com poemas de diagnóstico da voz poética em que imagens contrastantes de leveza e violência embalam o/a leitor/a que possa iniciar sem maiores avisos. O primeiro poema do livro apresenta imagens de pêssegos mornos embrenhados num corpo que, como se vê adiante, guarda dores como se fosse fruta macia pulsando no veludo violento do título. Segue-se, então, a estrofe que arremata a violência da dor contida dizendo que “sou do signo de vulcão/ esmurro paredes e choro cinzas/ destruo júpiter abrindo zíperes/ em madrugadas vermelhas”. Já se sabe que não haverá pactos, nem do lado do/a leitor/a, muito menos pela mão da poeta que força nossa mandíbula e puxa pela mão, conduzindo-nos por um passeio onírico entre efeitos de remédio e insônia em que a imagem de um travesseiro de placenta “bordado com fios de cabelo azul/ é recheado de sangue e sargaço”, arrematado por um dos versos mais icônicos do livro: “dentro de mim não há espaço”. A aliteração que sibila é encantatória e a profusão de imagens é o esvaziamento da figura da poeta contemporânea, da linhagem daquela acusada de denotativa por Masagão, aqui se metamorfoseando como a poeta do riso, de Virginia Woolf, aquela que provoca o/a leitor/a a rir porque se recusa a chorar e isso só é possível justamente porque ele/ela é capaz de ver a dor exatamente como ela é, cheia de ritmos e metáforas.

Como numa canção antiga, Natasha segue na primeira parte com poemas usando vocativo como “baby, camomila é placebo”, seguido do poema-oração que começa com o verso “nossa senhora do foco”. Com esse texto, com “mulher,/ por que reclama?” e “Evelyn MacHale”, completam uma sequência em ironia com temas profundamente enraizados no senso comum de autoria de mulheres como suicídio e a invocação da musa. “Oração a Nossa Senhora do Foco” é um dos poucos poemas nomeados e, assim como já citado anteriormente sobre Manuel Bandeira, aqui percebe-se um ritmo à la Carlos Drummond de Andrade, mas com outra chave de leitura, bem ao estilo da re-visão, proposta por Adrienne Rich como um ato de sobrevivência: reler, invocar o cânone e reescrever. A sequência “rogai por minha mente inquieta, dai-me sentido na vida./ mate meu talento, já não me importo, quero ser senso comum” dialoga com “Eterno”, do poeta de Itabira. Rejeitando também a caretice do moderno, Natasha deixa de lado, ainda, o rótulo da eternidade com versos como “quero resolver angústias existenciais com meu cartão de crédito/ assistir a noticiários e achar tudo banal“, apropriando-se de ritmos canônicos mas em diálogo com as impossibilidades do agora.

Em Veludo violento, a poeta transita bem por versos mais longos e narrativos e outros de maior economia sem deixar de lado uma ideia de projeto poético. Há espaço até para tiradas ao estilo de Alice Ruiz e de Leminski em uma dupla de versos que começa com “o bem não me distrai./ o mal não me destrói” que serve de introdução para a série de poemas “Babilônicas/Barbielônicas” que compõem o miolo do livro.

Seguindo as ideias do valor do riso, Virginia Woolf ressalta o poder certeiro das crianças em “conhecer os homens pelo que são”. Nos nove poemas da série o embate entre a infância e o mundo adulto acontece pelo olhar da menina que afirma ser “babilônica desde criancinha”, oferecendo seus dentes a Hamurabi, que os rejeita. Aqui sabemos que o não-pacto não é apenas algo do presente, dos poemas da primeira fase. É, antes de tudo, de formação. Uma formação babilônica de luta travada na infância entre uma criança doente e a padronização de uma boneca sorridente. Do incêndio à casa de bonecas no primeiro poema, pagando caro por isso, outro verso adiante diz que “cresceram orquídeas negras em meus pulmões/ senti o galope de Alexandre no peito/ mofei por dentro/ estampei com sangue seco/ lençóis e travesseiros”, em uma espécie de cosmogonia de uma doença contada pela criança que procura entender, como punição, a carnificina com a veia fininha que segue pela vida adulta. Oscilando entre punição e maldição, as bonecas de plástico de Natasha Tinet travam embates e sussurram nos ouvidos coisas como “seus rins se encherão de bolhas/ seu organismo se rebelará” e a resposta é que com “álcool na ferida e a vingança/ é um prato que se quebra nos dentes da frente.”.

De Ceci Calois, passando por Mice Follies de Tom e Jerry, até as Barbies derretidas e/ou decepadas, todas são imagens de violência contida que culminam em “ontem, fui Dalila/ agora, sou Salomé”, que abre o último poema da série “Babilônicas”. O riso que surge do que é “superficialmente cômico é fundamentalmente trágico”, dito por Virginia Woolf, exalta-se nos versos “minha gargalhada abafada/ pela máscara de nebulização/ instaura o fim de uma era/ as ruínas de uma civilização”. O exercício de transformar tragédias pessoais em diálogos com mitologia, personagens históricos, além de zombar das representações clássicas de mulheres, é um dos pontos altos da estreia de Natasha Tinet, que renega – pela via da escrita –  qualquer rótulo pejorativo de uma poesia pouco conotativa.

O destaque para a terceira parte de Veludo violento é a dupla de poemas intitulados de “Velhos”, em que o não pacto se concretiz seja pela forma como os poemas são dispostos como numa montagem de cinema  – em tela dupla, permitindo a visão de duas cenas, dois pontos de vista –, seja pela abordagem temática em que a visão de futuro está disponível, mesmo que pela via do tragicômico. Aqui, a avó lamentosa que diz que “os velhos/dos velhos só esperam que morram” e a compreensão da voz poética diante desse lamento nas estrofes seguintes são alguns dos versos mais bonitos do livro: “ainda tinha pétalas pólen nos/ dentes eu era muito criança/ para entender que velhos sobem/ em árvores roubam no jogo/ velhos não celebram a vida não/ celebram a morte// velhos celebram encontros.”.

Se o riso preserva nosso senso de proporção, lembrando-nos de nossa humanidade, como também afirma Woolf, Veludo violento nos ambienta na medida certa. Longe de ser sisuda e muito menos hermética, Natasha Tinet confirma o deboche, a ironia e o riso como vias outras em uma longa linhagem de autoria de mulheres como Adília Lopes, Wislawa Szymborska e Emily Dickinson, para citar apenas estrangeiras. A poesia contemporânea de autoria de mulheres não tem medo de rir de si mesma e de suas tragédias cotidianas e faz isso com rigor, forma e ritmo, pois o signo de vulcão as rege.


(*) Emanuela Siqueira é pesquisadora de estudos feministas na tradução, na literatura e no cinema. Também media o Leia Mulheres Curitiba desde 2015.

Imagem: caderno de poemas de Natasha Tinet, via Agência Alagoas.