No final do ano passado foi criado um tópico no fórum, o Top5 livros de 2011. Nesse tópico, tínhamos que eleger os melhores títulos que lemos no ano que se aproximava do fim. Notei uma quantidade muito expressiva de títulos do escritor português José Saramago e fiquei curioso por ler alguma obra dele, já que não tinha lido nenhuma até então. Foi aí que resolvi começar pelo livro Memorial do convento, publicado em 1982.
Devo dizer que acho a admiração geral por Saramago totalmente justificada, é de fato um autor talentosíssimo, dono de uma capacidade narrativa que surpreende o leitor desde a primeira página. Pelo mesmo motivo, entretanto, é que essas linhas aspirantes à análise parecem ser tão insuficientes e até mesmo grosseiras perto do primor de linguagem existente nas páginas de Memorial do convento.
O livro conta a história a partir de duas tramas, cujos desenrolares estão entrelaçados. A primeira conta de como o rei, na época Dom João V, resolve inscrever seu nome nos anais da História através da construção de monumentos e do incentivo às artes. Como Dom João V havia prometido a construção de um convento caso sua esposa lhe desse um rebento, somam-se às demais ordens de construção também essa, que deverá erigir um convento em Mafra para a ordem dos franciscanos.
A segunda história incide sobre a relação entre Baltasar Sete-sóis, um ex-soldado que perdera a mão esquerda numa batalha; e Blimunda Sete-luas, mulher cuja mãe fora condenada à fogueira pela “Santa” Inquisição e que possuía o dom de ver além das coisas comuns, enxergar dentro das pessoas, tanto em nível físico quanto espiritual.
Falando desse jeito resumido parece que pouco existe em comum entre as duas tramas, mas pelo fato de Baltasar estar desmobilizado e o rei estar angariando trabalhadores para realizar a construção do tal convento, os elementos das tramas vão se encaixando.
Baltasar e Blimunda também ajudam o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, que está a construir, a pedido do rei, uma passarola, uma engenhoca que aspira voar pelos céus portugueses e consagrar o nome de sua majestade como um patrono do desenvolvimento e da ciência. Blimunda usa de seu talento para juntar “vontades” dos homens, e o padre, usando de seus conhecimentos de alquimia, procura obter o âmbar. Ambos os ingredientes são como que o combustível que fará a passarola voar.
Saramago escreve em blocos, sem iniciar novos parágrafos para quase nada. Ele insere diálogos, enumerações, descrições e narrativa propriamente dita no corpo do próprio texto. E ele faz isso sem que o leitor se perca, é instintivo mas bastante organizado, por assim dizer. Isso faz com que, apesar das páginas serem praticamente tomadas por inteiro pelas palavras, a leitura flua de maneira surpreendente.
A contraposição das duas realidades – a da corte e da vida comum -, exprime também as próprias simpatias e convicções morais e políticas de Saramago. Tudo o que diz respeito à corte e às decisões reais é mostrado como uma veleidade, resultado de uma vida alimentada por futilidades e tomada de um sentimento inócuo de superioridade cuja pompa não convence. Já a realidade cotidiana, permeada pela busca incessante de subsistência, é muito mais calorosa e humana, espontânea e verdadeira. O amor de Blimunda e Baltasar, por exemplo, quando contraposto à relação entre Dom João V e a rainha Maria Ana Josefa, é muito mais sincero e profundo, angariando, por conseguinte, nossa simpatia pela saga dos não-abastados.
Saramago brinca com os expedientes semi-ritualísticos que integram a nobreza e a coroa, mostrando-os como impostações ridículas, futilidades se comparadas às preocupações que fazem parte da vida dos comuns, como Baltasar e Blimunda. Esses, vivendo sob a sombra da realeza, encontram-se submetidos aos mandos e desmandos do rei, tendo inclusive seus destinos influenciados por essas decisões. O autor procura mostrar como essa divisão é vil, como essa divisão entre os que levianamente mandam e os que são obrigados a obedecer é cruel e limitadora. Isso fica inscrito na maneira de retratar um e outro grupo, em que ele não poupa seus rebuscos para por em relevo as características que positivam um e negativam o outro.
De forma similar, Saramago deslinda a cortina de pretensa sacralidade que envolvia os mandos do rei e as graças da Igreja para destilar ironias ácidas contra a religião e a imagem tradicional forte que ela possui em Portugal. A religião está de tal forma entranhada na mundanidade que de pouco serve referir-se a ela como algo abstratamente divino, ela é tão humana quanto é submetida aos interesses dos que a praticam.
Tenho certeza que Memorial do convento é resultado de uma pesquisa apaixonada, que investigou tanto a constituição dos costumes e objetos daquela época, o século XVIII, para contar nas suas fissuras outras histórias que não ficaram tão conhecidas quanto aquelas que estão nos anais da realeza lusitana. Transitando entre a realidade e a fantasia, e usando recursos literários que lembram o “realismo mágico” latino-americano, Saramago justifica a celebridade que possui.
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