A matéria que está dentro de uma bolha não é a mesma que nos rodeia. A bolha, por breve instante, guarda “signos crípticos” e lembranças que só os olhos mais curiosos e os ouvidos mais sensíveis conseguem desvendar, tornando-se Bolha de Luzes, título do livro de contos de João Inácio Padilha. Cada um dos 13 contos reunidos no livro estão ligados por essa mesma massa efêmera, seja de forma direta, com sua formação física, ou de forma mais sensível e psicológica, ao narrar as experiências íntimas das personagens desenvolvidas pelo autor.
O conto Memorial do Esquecimento, por exemplo, é um dos mais diretos a temática da bolha como objeto físico. Na narrativa, Maria Kodama dorme no momento de seu trabalho, que é o de tomar notas do escritor Jorge Luis Borges, que despeja várias memórias de sua infância ao se lembrar das primeiras vezes que teve contato com bolhas, desenvolvendo tudo até criar um manifesto. Tudo que ele declamou naquela tarde foi perdido pela displicência de Kodama, mas nós, leitores privilegiados, sabemos o que foi dito graças ao narrador-observador, que nos conta o ocorrido. “Apenas os poetas consultam essas bolhas. Encontram dentro delas, como em bolas de cristal, indícios de seres que viveram e fatos que aconteceram no mundo real, mas foram esquecidos. Que horror.”
Dois outros contos que merecem destaque, na minha opinião, são Viagens e viajantes na história da literatura e In God we trust. Ambos tratam a figura da bolha de forma mais interior. O primeiro fala exatamente do que o título sugere e, assim como Memorial do Esquecimento, também apresenta um escritor real no enredo. Nessa narrativa, um conferencista conversa com o professor Otacílio, personagem que revela ter vivido experiências incríveis ao lado de Machado de Assis e pretende provar que Machado deve ser elencado ao lado de Dante, Camões e Verne, como autor de livros com a temática da viagem. Para isso, os dois percorrem ruas do Rio de Janeiro a fim de reviver os passos do escritor até que o professor consiga provar sua teoria. É bom ressaltar, neste ponto, que várias personagens criadas por Padilha são obcecadas, seja por suas memórias, ou por seus objetivos, beirando até mesmo a loucura. Isso deixa os contos ainda mais interessantes.
Já o conto In God we trust não faz alusão a nenhum escritor, mas sim a um dos rostos mais conhecidos da América – George Washington, que estampa as notas de um dólar. O conto, narrado em primeira pessoa, revela a vida de um homem que começa a encontrar sucessivas notas de um dólar, sempre posicionadas em um mesmo lugar entre um estabelecimento e a rua. Esse pequeno acontecimento começa a invadir o íntimo da personagem, que não tem outra alternativa a não ser a reclusão e o surto. Tanto nesse conto como em outros ao decorrer do livro, é possível encontrar trechos escritos em francês, italiano, espanhol ou inglês, de acordo com a nacionalidade da personagem ou citação. Padilha mantém esse recurso, que trás mais veracidade aos contos.
Para finalizar, retomo novamente ao conto do Memorial do Esquecimento, mais especificamente, uma parte em que o autor cego pensa em propor para Maria Kodama que a memória está para a água assim como o esquecimento está para o ar contido em bolhas. Retomo a esse ponto, pois acredito que essa seja a base dos textos de Bolha de Luzes – o esquecimento. João Inácio Padilha revela, em seus textos, relatos que tratam do mais oblíquo pensamento de cada personagem, passando por divagações alucinantes e preciosas. O sentimento, ao lê-las, é de que se tratam, como dito no próprio livro, de “íntimas ocorrências” que poderiam ser deixadas de lado e esquecidas, mas felizmente foram salvas pela escrita de um autor criativo e original. Padilha revela algumas histórias que beiram o absurdo e são recheadas de delírios, mas consegue dar a elas o tom de realidade. Em alguns momentos, ele mistura figuras reais e até personagens de livros como Tintin a sua ficção, mostrando, dessa forma, uma fina camada que separa a fantasia do real, assim como bolhas de sabão.
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Preço: R$44,50
Páginas: 144