Ver: Amor, do escritor sabra David Grossman, é um livro tão singular quanto seu título. Lançado em hebraico em 1986 e ganhando sua primeira edição brasileira em 1993 (pela Nova Fronteira) e reeditado pela Companhia das Letras em 2007, o calhamaço de mais de 500 páginas é uma das principais obras do autor- e uma das mais representativas escritas pela geração israelense que herdou a Shoah.

Em tese o livro nos conta a história de Schlomik- Momik, para encurtar- um garoto que nasceu em Israel, filho de pais que sobreviveram aos campos de concentração e decidiram começar vida nova na jovem pátria judaica. Mas não é tão simples: o livro divide-se em quatro grandes partes, cada um com um funcionamento totalmente diferente das outras.

Na primeira Momik ainda é criança, um alter kop de apenas 10 anos. Ele não entende muito bem o que aconteceu na Europa- que chama de Terra de Lá– mas sabe que algo terrível destruiu a vida que seus pais e quase todos os adultos que ele conhece tinham, e que por isso eles são cheios de medos e eles carregam a morte nos dedos e acordam com pesadelos. Tudo o que ele sabe é que isso é culpa da Besta Nazista- que ele imagina ser um monstro lendário, que pretende criar em seu porão para derrotar. Pretende, com isso, salvar seus pais- e todos os outros.

Saltamos então para a idade adulta de Momik, que- inspirado por seu avô Anshel Wasserman- tornou-se escritor. Parece, no entanto, que apesar de ter criado um maior entendimento a respeito do Holocausto e de toda a tragédia judaica na Europa, ele não conseguiu derrotar a Besta Nazista, e é atormentado por ela. É por isso que ele decide escrever a respeito de Bruno Schulz, escritor judeu polonês que foi morto devido à disputas entre dois oficiais nazistas. Em sua história Bruno não morre, mas torna-se peixe e descobre, assim, o que procurou a vida inteira. A história, porém, é criada em conjunto, em um dialogo pelo mar- que é uma mulher, que amou Bruno com todas suas forças- e Momik.

Na terceira parte temos a ainda mais fantástica história de Anshel Wasserman. Momik revisita o passado em que o avô, criador da série infantil ‘As Crianças do Coração’- que cativo crianças no mundo inteiro mas que era considerada de qualidade duvidosa pelos críticos- acha no comandante do campo de extermínio onde estava durante a guerra um grande fã seu. E, como parecia não saber mais morrer- havia sobrevivido ao gás e à outras tentativas de execução- firmam um acordo: Neigel, o oficial das SS, promete tentar matar-lhe toda noite, desde que lhe conte um novo episódio das Crianças do Coração.

Por fim Momik toma emprestado uma das personagens criadas por seu avô, Kazik- que, maravilhosamente, passa por todas as etapas de uma vida humana no período de 24 horas. Sua vida, porém, nos é exposta em formato enciclopédico, em verbetes organizados alfabeticamente (em hebraico, vale avisar).

Com isso Grossman demonstra ser um escritor extremamente versátil, escrevendo de modo polifônico e díspar sem, no entanto, desvirtuar o enredo. Aproveita-se ainda de expressões em polonês, ídiche e alemão para dar cor à obra- sem contar as inúmeras palavras que inventa e que não explica o que significam, para as quais o leitor apenas pode tentar adivinhar o significado.

Ver: Amor é um livro altamente metafórico e que pode ser lido de várias maneiras. É a luta de um homem com o mundo que lhe cerca, com um mundo ao qual sente não pertencer, mesmo sendo incapaz de abandoná-lo. Trata ainda da história de Israel recontada em tons intimistas e fantásticos- mas nos quais pode-se encontrar todos os principais acontecimentos da vida do país. Quem sabe não seja a respeito das armadilhas da criação literária (e artística). Ou sobre tudo isso ao mesmo tempo.

 

Ver: Amor

de David Grossman, tradução de Nancy Rosechan

536 páginas

R$ 73,00

 

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras

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