Toda vez que estou em um ônibus, trem, táxi ou caminhando pela rua mesmo, reparo nas minúcias das pessoas que dividem os mesmos espaços em pé, sentados e andando – e do nada uma voz melancólica (quase taciturna) narra o que penso sobre cada uma: o jeito de se vestir, os movimentos histéricos das mãos, os fones de ouvidos gigantes, o toque do celular, o livro que lê, a maneira que evitam olhar para cada novo indivíduo. Não obstante, esse narrador cria um pano de fundo, uma história de vida para explicar o porquê de tal personagem estar presente na minha frente – ou do lado.

A última dessas aventuras foi durante o diário trajeto que faço até o trabalho, pegando o 856R (Lapa/Socorro) que me deixa no bairro do Itaim. Todos os dias faço o mesmo ritual: entro e procuro assento na escada das portas que só se abrem quando o ônibus passa pelo corredor exclusivo – o que não acontece nesse trajeto, pois apenas a porta do fundo é utilizada, e começo a ler. Depois de dois ou três pontos, nunca estou atento, uma menina entra, todos os dias, com as maçãs do rosto levemente vermelhas, um pouco por causa do blush e um pouco natural, magra, piercing no nariz, cílios demasiadamente longos e lábios bem finos. À primeira vista tinha certeza de que era judia, só que não teria a cara de pau para puxar esse assunto, mesmo porque eu tenho uma curiosidade ímpar sobre o judaísmo e o hebraico – como já flertei com o Corão (que ganhei do Sheik Jihad Hassan Hammadeh, com quem fiz uma péssima piada quando ele assinou o livro sagrado: “poxa, queria que o autor original assinasse”, ele deu um leve sorriso, em uma palestra) ou mesmo com a Bíblia (e ainda afirmo que o Antigo testamento é épico).

Aquela menina olhou para mim num dia de calor em São Paulo (eu estava de camiseta e calça jeans com um rasgo entre as pernas), enquanto eu secava o suor com as costas da mão, e lançou um leve sorriso, lá pelo quarto dia em que compartilhamos o mesmo ônibus, o qual não saquei bem o que significava: um aceno comum de pessoas que se esbarram em lugares mundanos ou uma segunda intenção? Voltei meus olhos para Ilustrado, de Miguel Syjuco, sem esboçar a mínima reação – uma amostra da minha arcada dentária ou um leve consentimento com a cabeça. O narrador de mim mesmo, aquele caçador de analogias e metapensamentos, observou um pequeno detalhe no antebraço, o lugar preferido de jogadores de futebol para colocar que Deus é fiel ou o nome de seus filhos, da menina: uma tatuagem. E não uma tatuagem qualquer, eram duas palavras da primeira frase do “El malé rachamim”, uma prece judaica, Menuchá nechoná. Nessa hora a voz caiu num deleite: me lembrou que a única forma de eu conhecer aquele título em particular era por ter tatuado no pulso “Uma paz” em hebraico, inspirado no título “Uma certa paz”, de Amós Oz. A nota inicial no romance de Oz é justamente para explicar o título original Menuchá nechoná (“paz correta” ou “descanso correto”).

Pedi para um amigo judeu escrever, e ele fez mais do que isso, escreveu em letra de forma e cursiva (a mesma forma no antebraço da garota). Arrependi-me. Não queria tatuar uma prece e, sim, uma lembrança de um livro que gosto muito, por mais que o significado real destoasse um pouco do pretendido anteriormente (ainda me policio para não tatuar uma amarelinha ou “o diabo na rua no meio do redemoinho”). De onde essa menina tirou aquela frase? Realmente seria judia e tinha perdido um ente querido e, decidida, eternizou o “descanso correto” no seu antebraço? Ela percebeu que a minha tatuagem, à vista enquanto eu secava o suor, teria uma mínima relação com a sua ou por claramente ser escrita em hebraico? Meu narrador a fotografou trajando uma calça xadrez, um allstar branco de couro, uma camiseta com a gola esgarçada, no Centro da Cultura Judaica com o livro de Amós Oz em hebraico. Chocada com a história de Ionathan, e sua abertura fenomenal: “Um dia um homem se levanta e muda de um lugar para outro. O que ele deixa atrás de si fica para trás e só lhe vê as costas”; caminhando para uma aula de culinária. Prato do dia: Charosset (Pessach está chegando). Ela, talvez se chamasse Sara, ou qualquer outro nome com a letra S (Samantha, Samara, Shirah) e talvez estivesse lá apenas para almoçar no GERSTEIN CAFÉ & DELI.

Provavelmente a homenagem dela fosse mais fiel, bem mais fiel, ao grande escritor Israelense ou a prece. Pouco importa. Encontrar uma frase que não seja em Kanji numa moça de mais ou menos 22 anos era uma coincidência longe da cretinice e uma ótima desculpa para receber um sorriso. Pena que meu narrador onisciente tenha esquecido de premeditar que, se lançasse um olhar de aprovação, convite, chamamento, convocação ou apelo, eu teria descoberto como fazer um delicioso Krupinick ou uma amiga goy para conversar sobre a literatura judaica de Imre Kertész ou A.B. Yenoshua. Falando sobre as palavras mais bonitas do hebraico e iídiche. Na verdade, a voz em tom de escárnio – da melhor maneira, daqueles narradores que adoram matar seus personagens ao final de uma história banalmente existencialista e, se pudesse, faria o ônibus capotar em plena Faria Lima -, ela só tenha visto a minha calça rasgada e sorriu pela vergonha, o que as bochechas rubras disfarçariam, e nem deu bola para a minha tatuagem co-relacionada.