É sempre agradável ler um romance de Machado de Assis. Fazia tempo que não sentava para apreciar as utilizações machadianas da língua e a destreza com que ele faz situações simples se desdobrarem em relações e estudos complexos, que versam sobre as peculiaridades do comportamento e os ânimos do espírito humanos.

Há uma separação clássica empreendida sobre a obra de Machado de Assis, que separa sua produção em duas fases, a chamada “fase romântica” (que tomando os anos de publicação como base, vai de 1872 a 1878) e a posterior “fase realista” (1881-1908). Embora essa divisão seja tanto interessante quanto limitadora, é interessante perceber como que, a despeito de possíveis enquadramentos meio “escravizantes”, as distinções e semelhanças vão se manifestando nas produções de uma e outra fase.

Ressurreição, por exemplo, é um romance de 1872, ano que marca o debute de Machado no universo literário do romance, que, de acordo com aquela delimitação tradicional citada anteriormente, estaria situado ainda na fase romântica do autor. Essa pertença se daria por conta de, por exemplo, a imagem projetada sobre a mulher, ainda residualmente aquela musa idealizada e divinizada típica dos folhetins e dos romances de José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo; a celebração do affair como uma experiência espiritual suprema; os “exageros” (deixo as aspas por estar essa palavra fortemente ligada a considerações de ordem pessoal) vinculados aos enlaces e desenlaces amorosos e assim por diante.

Desse universo que flerta com elementos tipicamente românticos é que surge a história de Félix, um médico de espírito boêmio cujos rendimentos pecuniários lhe permitem ter uma vida folgazã sem preocupações da ordem da subsistência. Esse médico tem uma regra para si mesmo, que diz que seus amores são semestrais, ou seja, tem duração de seis meses, doa a quem doer.

É então que se apresenta a mocinha que anuncia profundas mudanças nos hábitos do médico protagonista: a viúva Lívia, irmã de Viana (um dos que freqüentam a casa de Félix), cuja graça e distinção cativam a atenção de Félix e o fazem refém de um amor que vai florescendo aos poucos. Está posta a estrutura sobre a qual se baseará todo o desenrolar subseqüente.

Félix, até então comedido e desapegado de seus romances, vê operar-se em si próprio uma mudança radical, pois passa a perder noites de sono pensando em Lívia; a escrever cartas de arroubos poéticos e amorosos que não ousa entregar; viver dilemas sobre visitar a amada ou não etc. Enfim, aquela paixão candente que anima o herói romântico a empreender jornadas mirabolantes passa a toldar os pensamentos e ações do outrora frio e racional médico.

Assim como vem o amor e a paixão, lhes acompanha também o ciúme, e começam as suspeitas, as intrigas, as desavenças, os cerceamentos e interrogatórios; e nesse ritmo segue o affair, aos trancos e barrancos. Se em um momento Félix e Lívia se entregam ao mais sublime abraço de namorados, proferindo promessas e loas recíprocas; em outro estão distantes, sem saber ao certo o que pensar ou como agir, sentindo a insatisfação um do outro, ao mesmo tempo em que os anseios de reconciliação se insinuam a cada fala.

Mas eis que todo esse imbróglio amoroso encontra em Machado destino diferente: aquele sacrifício final no altar do amor não tem lugar no livro; a cândida viúva não tem somente qualidades, alguns defeitos (ainda que tímidos) permeiam essa ou aquela descrição; os trancos e barrancos do casal tomam proporções maiores e ameaçam a harmonia imanente dos amores românticos.

Tudo isso vem orquestrado por aquela ironia refinada e eruditíssima, recheada de referências à Shakespeare, à fábulas ou à histórias da cultura clássica greco-romana. O autor segue complexo, camaleônico e multifacetado o suficiente para tornar divisões e conceituações escopos imperfeitos.

Tendo em vista a miríade de referências que a edição da L&PM se apresenta como ótima opção, pois conta com notas de rodapé bastante elucidativas, prefácio e posfácio, que deslindam detalhes importantes para compreender a obra machadiana. Um prato cheio para fãs e não-(ainda-)fãs do (perdoem-me a liberdade) bom e velho Machadão.