A letra escarlate, de Nathaniel Hawthorne (escrito em 1850), é um mergulho intenso e formidável nos costumes da Boston do século XVII, onde nos deparamos com Hester Prynne, recém-chegada e a espera do marido que vem em seguida. Contudo, só saberemos desse pequeno detalhe mais para frente quando já vimos a condenação da jovem por adultério. Ela deve criar sozinha sua filha, fruto da traição, e carregar dia e noite a letra “A” bordada para que todos saibam do seu crime.

Há muito o que se dizer sobre clássicos que não precisam ser resenhados por ter textos em demasia ou porque os estudos em cima dele não teriam como ser condensados em poucas linhas. Não vejo isso como um erro, mas é claro que espantar as pessoas pela alcunha de clássico seria um erro e, na verdade, o apelido deveria servir para seduzir a todos. Digo isso pois não quero ser o mais novo estudioso de Hawthorne – apesar de ter adorado essa experiência com sua heroína adúltera -, mas que é necessário esquecer tudo que já foi dito sobre uma grande obra e encará-la de frente e descobrir diversas referências em histórias atuais.

Lançado recentemente pelo selo Penguin-Companhia das Letras, a edição é recheada de notas que ajudam a saciar a curiosidade do leitor e se aprofundar um pouco mais na história. É preciso ressaltar que muitas das comparações feitas pelo autor remetem ao passado histórico da cidade de Boston como Anne Hutchinson, Richard Bellingham, John Wilson e muitos outros.

O meu primeiro contato com A letra escarlate foi a adaptação competente – que após a leitura enxergo com outros olhos – do diretor alemão Win Wenders. Por um dado curioso, antes do livro chegar, acabei por assistir Easy A (no Brasil, A Mentira) com Emma Stone, uma garota que é considerada a fácil do colégio e resolve seguir o castigo de Prynne para que todos saibam quem ela é. Sem contar as referências ao autor no filme Os Infiltrados, de Martin Scorsese. Esse livro estava predestinado, aparentemente, a mim.

Hester deve cuidar de Pearl, sua filha bastarda, sozinha, pois seu marido ao chegar à cidade lhe faz uma visita na prisão e revela a vergonha que sente dela. Para não sofrer com os julgamentos e ser ligado a ela, ele se apresenta como Roger Chillingworth, um médico. Quem é o pai da criança? Um membro do clero: o jovem reverendo Dimmesdale. O caminho dos três se cruzará, enquanto Prynne tentará criar a filha da melhor maneira possível, Roger buscará vingança ao descobrir quem é o pai de Pearl e Dimmesdale lutará com uma doença quase espiritual por carregar tal culpa. Esses conflitos ainda resultarão em uma pressão do conselho da cidade para que Pearl seja levada a um orfanato.

A narrativa de Hawthorne costura momentos belíssimos e atordoantes, criando um suspense quase psicológico. Acompanhar a história entre o reverendo Dimmesdale e o suposto doutor Chillingworth, que dividem o mesmo teto após algum tempo, é torturante. Os encontros entre Hester, Dimmesdale e Pearl dão um fôlego quase esperançoso, mas é possível perceber que o médico parece saber cada passo que os dois dão. Mesmo com todas essas relações, Hester Prynne é o destaque e a força dessa obra, vivendo de contrastes: uma pecadora que convive e ajuda a todos, pobres e doentes sem discernimento ao contrário de todos aqueles que a julgaram enquanto ela caminhava, com a filha nos braços, até o cadafalso para receber sua sentença. Sua maior sina não é carregar o “A” bordado, mas sim guardar para si a identidade do pai de sua filha e a identidade de seu marido (que a pede para avisar a cidade que morreu). Ou seja, mesmo sendo uma pecadora que foi julgada e condenada, sua fidelidade para os dois homens de sua vida é totalmente sem mácula. Ela não busca vingança contra eles, mas admite odiar aquele que já foi seu marido.

De momentos tocantes àqueles mais taciturnos, A letra escarlate é uma aglutinação de assuntos pertinentes como comportamento da mulher na sociedade, moral, ética, religião e, em grande parte, sobre fidelidade – não apenas matrimonial, mas aquela fidelidade com os próprios príncipios, fugindo do senso comum para conseguir um espaço merecido dentro de convivências hipócritas. Um clássico.