Fala-se sempre de Ana Cristina Cesar, Ana Cristina, Ana C. por aí. Nem sempre se fala da poeta em sua completude, com base em sua obra por inteiro. Há boas razões para isso: a falta de circulação de seus livros, especialmente das edições antigas como A teus pés (Brasiliense, 1982); o reforço constante na imagem de sua persona, da poeta suicida, como se fosse a Sylvia Plath brasileira (o que também reduz a poeta americana a um estereótipo); a negligência de parte da crítica literária até anos atrás, que ainda mantinha marginalizada a poesia marginal, como registro da época do mimeógrafo. Espera-se que com Poética, compilação de sua poesia completa recém-lançada (Companhia das Letras, 2013), esse cenário mude. Seus anexos e seu posfácio, da professora Viviana Bosi, certamente auxiliam na compreensão desse universo pelo leitor.

Ana C. é conhecida pelos poemas de seus primeiros livros, todos produzidos e distribuídos de maneira independente, como Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979) e Luvas de pelica (1980). Todos esses foram depois relançados junto com poemas inéditos em A teus pés, dessa vez por uma editora, um pouco antes de sua morte. Apesar do curto período de produção publicada da autora, nota-se a grande diversidade de sua poesia. Por Poética, entende-se fácil essa variedade estética. A autora escrevia desde a década de 1960, sendo que alguns de seus textos dessa época chegaram a ser reelaborados e editados nos volumes citados anteriormente.

Percebe-se em poemas conhecidos, como “Conversa de senhoras”, a presença da temática do cotidiano, que é sempre relacionada aos poetas marginais pela crítica. Agora, de quem seria esse cotidiano? O eu-lírico de Ana C. é fluido, varia da mulher apaixonada, da mulher na consciência de si até o coletivo que passa pelo individual:

 

Conversa de senhoras
Não preciso nem casar
Tiro dele tudo que preciso
Não saio mais daqui
Duvido muito
Esse assunto de mulher já terminou
O gato comeu e regalou-se
Ele dança que nem um realejo
Escritor não existe mais […]

 

O poema segue apenas com versos que se assemelham a fragmentos de conversas, como aquelas que geralmente ouvimos ao andar pela rua. Não se trata, porém, de uma “poesia-verdade” ou de uma “poesia-documentário”. Seria leviano simplificar a poética de Ana C. nesses termos com certo tom acadêmico ou de manifesto. Há uma recolha de impressões sobre o coletivo a partir de uma seleção de vozes dele vindos. O indivíduo, o eu-lírico surge justamente na seleção. Ana C. não se abstém da subjetividade como força motriz de sua poesia.

Em poemas como “Vacilo da vocação”, observa-se que a “vocação” do poeta sempre aparece como questão diante da sociedade, o que também lemos até em “Conversa de senhoras”. O “assunto de mulher” ganha lugar na discussão, aparece na poesia, porém como “escritor não existe mais” deixa de ter valor. Em Ana C., vê-se claramente que há o constante esforço de situar a mulher para além do feminino, do eu-lírico romântico masculino que traz uma sensibilidade ao texto para poder se sentir próximo da amada. Em todos os poemas de Poética, a poesia é mulher, não tenta apenas se aproximar do que seria o feminino.

 

Vacilo da vocação
Precisaria trabalhar – afundar –
– como você – saudades loucas –
nesta arte – ininterrupta –
de pintar –
A poesia não – telegráfica – ocasional –
me deixa sola – solta –
à mercê do impossível –
– do real.

 

A poesia deixa o eu-lírico livre, “à mercê do impossível, do real”, pois lança o mundo em todas as suas possibilidades para além de uma “arte ininterrupta de pintar”. Por vezes, Ana C. parece querer ser enigmática. Outras vezes, como nesse outro poema dos Inéditos e dispersos póstumos, relançados em Poética, estabelece-se uma intertextualidade dentro do próprio universo da autora. De repente, “Conversa de senhoras” entra no diálogo e tudo se torna “poética”, como no título da recente coletânea.

 

houve um poema
que guiava a própria ambulância
e dizia: não lembro
de nenhum céu que me console,
nenhum,
e saía,
sirenes baixas,
recolhendo os restos das conversas,
das senhoras,
“para que nada se perca
Ou se esqueça”,
proverbial,
mesmo se ferido,
houve um poema
ambulante,
cruz vermelha
sonâmbula
que escapou-se
e foi-se
inesquecível,
irremediável,
ralo abaixo

 

A poesia sempre associada à existência, à vivência proverbial diária. Nota-se que Ana Cristina, assim como outros de sua geração, explora formalmente o poema em todas as suas possibilidades a fim de expressar sua angústia pela expressão. Ele pode se ligar a outros textos, a fotografias, a outras artes, à música popular. Há o erro comum de se separar “marginais” de “formalistas”, geralmente se referindo aos concretistas. Em sua maioria, todos os poetas a partir da década de 1950 procuram desenvolver formas próprias, às vezes não tão “vanguardistas” quanto a crítica esperava, essa crítica ainda tão ligada ao Modernismo de 22. Ana C. a cada poema procura sua forma, inclusive com base nas experiências de seus antecessores. É possível perceber as semelhanças entre ela e Manuel Bandeira, por exemplo.

Os dilemas desses modernistas, brasileiros, portugueses, estão todos ainda em Ana Cristina. Poemas simples como “Poema óbvio”, que se apresenta no título como algo a ser previsto pelo leitor (como?), demonstram preocupações semelhantes entre tempos distantes:

 

Poema óbvio
Não sou idêntica a mim mesmo
sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob
mesmo ponto de vista
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante
junho/69

 

Trata-se de um dos dispersos, de um período anterior às edições mimeografadas. O poema parece ser óbvio pelo dilema justamente, que nos remete a Mário de Sá-Carneiro, por exemplo. O problema da identidade, do indivíduo em debate com a sociedade, à procura de sua própria lógica está aqui. A poesia parece ser o caminho para que essa mulher, marginalizada como a poesia, busque para além do divino, sem esquecer do concreto, do palpável do dia a dia, um espaço para si.

Poética traz um pouco de tudo do que foi Ana Cristina. Difícil resumi-la. Talvez desnecessário. Sua diversidade poética parece atrair públicos variados que até hoje chegam aos seus livros por sua persona e encontram uma poética que por distintos meios deseja um lugar entre a poesia e a prosa, entre o narrativo (inclusive o ensaio de um romance) e o lírico, como em “Samba canção”, de A teus pés, lido pela própria poeta.