Lukács é deveras um pensador intrigante, seja para a Filosofia, seja para a História, seja para a Literatura. Seu estilo de escrita é daqueles intrincados, não porque tenha volteios ou exercícios estéticos em demasia, nada disso; mas quando se trata de expor uma ideia ou expressar em palavras uma reflexão cheia de meandros e de silogismos nada lineares, ele abusa das frases longas e torna a leitura uma tarefa hercúlea. Pelo menos as recompensas não são poucas nem fugazes.

Não nos alonguemos sobre o estilo de Lukács, partamos para o conteúdo de seus estudos, nesse caso o romance.

O romance intrigou Lukács ao ponto de fazê-lo, já em 1917 (antes da publicação de suas obras mais famosas) dedicar-se a compreender as implicações e as razões históricas e filosóficas desse “fenômeno” tão literário quanto social. E eis que no ensaio Teoria do Romance ele procura compreender melhor não só a gênese desse “formato”, mas os significados dele perante o universo da literatura e o contexto histórico no qual esteve inserido.

Por conta dessa referência, foi pelo contraste entre a epopeia que as estruturas e as peculiaridades do romance vieram à tona com mais clareza. Uma vez que ele não compreende a literatura como uma instância “a-histórica” ou “a-social”, mas justamente fundada e emaranhada no tecido do social; acabou que se contrapuseram também dois contextos históricos distintos: um em que a epopeia nasceu e outro em que o romance conheceu sua aurora.

Se tomarmos como exemplos as duas epopeias por excelência, a Ilíada e a Odisséia (citadas por Lukács em seu ensaio), veremos que elas nos remetem à Antiguidade, um tempo deveras diferente daquele onde o romance surgiu. Epopeias se remetem a histórias de povos, de um grande contingente de pessoas, são grandiosas, cantam as glórias e celebram as conquistas, por mais sangrentas ou dificultosas que elas possam ser.

Por mais que os dramas e as tragédias já existissem na Grécia Antiga, por exemplo, eles não descaracterizam a analogia que Lukács arquiteta, entre o romance e a epopeia. Eles se mantiveram em alguma medida e se perpetraram no romance mantendo mais ou menos suas características antigas. O “gênero” que sofreu o impacto mais direto (de modo que da cisão surgisse um divisor de águas) foi justamente a epopeia.

Por mais que Lukács diga que o romance é a “epopeia” do mundo fragmentado, não dá para chamar romances de épicos a não ser fazendo ressalvas ou colocando aspas. Não digo necessariamente pela linguagem ou pela disposição estética (nem tenho conhecimento para julgá-los a partir de tais aspectos), mas pelo que eles representam em termos de produção humana e que sentidos ela carrega em relação a realidade, afinal, são históricos.

A base romanesca sobre a qual Lukács se ergue para construir suas análises é a produção dos séculos XVIII e XIX. Estão nesse recorte autores como Balzac, Goethe, Victor Hugo, Walter Scott e outros (Cervantes e seu Quixote, embora do século XVII, entram pela carga emblemática que representam em relação ao romance). Ora, esses séculos não possuem significação pujante somente para a literatura, mas para a sociedade como um todo, é nesses séculos que se localizam a Revolução Industrial, as assim chamadas “revoluções burguesas”, a elaboração das ideias de Marx, a contestação anarquista de Bakunin, o agravamento do “mundo” capitalista. Tais séculos são cruciais para compreender não somente o romance, mas vários dos pilares da civilização ocidental.

O liberalismo construía suas bases já havia algum tempo, fortalecendo as mudanças econômicas sacramentadas pela revolução industrial. Por outro lado, surgia o proletariado e aumentavam as lutas que encontrariam reverberações ao longo de todo o século XX. Era um mundo que havia sido cindido, a caixa de Pandora da civilização industrial havia sido aberta, o otimismo encontrava cada vez menos espaço nesse mundo fragmentado.

O romance é fruto dessa desagregação. E é do contraste com a “organicidade” e a unidade características do “mundo das epopeias” que ele se desenha. Ele almeja a unidade perdida, segundo Lukács, ele procura construir interpretações que nos permitam compreender as peculiaridades desse novo “mundo” que surgia diante dos olhos.

Pensar em epopeias a essa altura soaria utópico, como outrora fora o sonho de Thomas More. Visões várias se desenhavam, e não a toa que a nostalgia ditava o tom de várias delas. O mundo não era mais o que fora outrora.

Ao mesmo tempo, porém, o romance se moldava a partir de outros fatores. Elementos esses que serão explorados no mês que vem.