O livro Uma curva no rio, do escritor nascido em Trinidad e Tobago, V.S. Naipaul, traz no título o que parece ser uma referência geográfica, ou ao menos uma referência de localização. Entretanto, conforme o novelo da trama vai sendo desfeito, percebe-se que o que antes parecia ser um local (já que a cidade onde a história se passa se encontra na curva de um rio) na verdade é mais do que isso, é um “lugar” histórico, um bastião localizado no espaço e no tempo, não cronológico, mas socialmente construído.

Ao atribuir o prêmio a Naipaul, a Academia Sueca se pronunciou justificando sua escolha dizendo que a láurea fora concedida ao autor “por unir narrativa perspicaz e escrutínio incorruptível em trabalhos que nos levam a ver a presença de histórias suprimidas.” Naipaul consagra-se nesse livro como um porta-voz de anseios dispersos pela África, ora mais gerais ora mais específicos, que alcançam altas notas quando sobrepostos e emaranhados nas próprias tramas tecidas pela História na encruzilhada de caminhos que foi (e continua sendo) todo o continente africano.

O livro se detém sobre a narrativa em primeira pessoa de Salim, um jovem habitante da região leste da África que antevendo difíceis mudanças no lugar onde mora, resolve aceitar a oferta de um amigo de sua família, Nazruddin e partir para a África central, onde compra uma loja numa cidade incrustada no coração da floresta.

Ao adentrar na cidade (que se supõe localizar-se no ex-Congo Belga), Salim descobre que se trata mais de um conjunto de ruínas em lenta recuperação do que propriamente de uma cidade da forma como ele estava acostumado. Na beira do rio (também não nomeado), Salim se junta a um criado da família que insistiu em acompanhá-lo, e o filho de uma amiga sua para tentar manter a loja viva no contexto da economia local. Essa se encontra extremamente debilitada pelos enfrentamentos tribais e pela ação dos nativos, que descontentes com a invasão e colonização, reagem muitas vezes de forma explosiva.

A localização histórica do livro também é propositadamente escolhida para arrancar toda a dramaticidade e as questões do processo histórico circundante, no caso a descolonização da África e os possíveis caminhos a serem trilhados pelos povos do lugar dali em diante. A instabilidade a um tempo promissora e ameaçadora que enfrenta Salim com sua loja, é emblemática na medida em que está atada a um processo mais amplo, que sintetiza boa parte da situação da África no cenário pós-colonização. As ruínas em que a cidade se encontra são os restos da colonização que permanecem, quase indeléveis em sua incompletude, formando a base precária sobre a qual deve caminhar a África dali em diante.

Naipaul consegue fazer saltar aos olhos uma infinidade de questões, mesmo que às vezes ele mesmo encontre dificuldades em lidar com elas todas de uma vez. Não se trata, contudo, de faltas do autor, mas a expressão da própria situação que ele observava, afinal colocava-se ali um divisor de águas na História do continente (ou de boa parte dele). Os olhos e os esforços voltam-se não para um futuro onde impera o otimismo, mas sim um árduo processo de reorganização sobre a qual pesa o espólio sangrento do passado de colônia e todo o enfrentamento responsável pelas cicatrizes deixadas na cidade na curva do rio.

Ao longo do livro são expostas várias situações bastante expressivas, como quando o amigo de Salim traz uma franquia de fast-food para se instalar na cidade, apresentando outras facetas da colonização modificada, porém insistente e metamorfoseada; ou quando os dois jovens que acompanham o protagonista na lida diária com o comércio se mostram confusos com o porvir e suas próprias identidades, já que o “mundo” em que cresceram passa por solavancos profundos, reordenando (ou trazendo o caos) vários aspectos da realidade.

Uma curva no rio retrata um parto, ou melhor, vários nascimentos. A “velha” África está gemendo em dores de parto para que a África “moderna” venha ao mundo. Dessa sofrida concepção nascem e se digladiam projetos, alguns surgem natimortos, outros se impõem e outros são esmagados, todos na esteira de transformações acompanhadas de mudanças presidenciais, sublevações populares, rusgas tribais, enclaves econômicos e assim por diante.

A curva no rio mostra assim outros de seus significados. Se falando fisicamente a curva do rio é o local onde se acumulam detritos e fragmentos de toda a extensão do leito, ao transpormos isso para o terreno ficcional de Naipaul, vê-se situação semelhante, pois se trata de um lugar onde fragmentos de colonização, raízes tribais, disputas político-partidárias, conflitos étnicos e avanços capitalistas se entrechocam, sobrepondo-se, anulando-se, combinando-se e sintetizando-se de formas peculiares, escrevendo muitas vezes com sangue a História tão conturbada do continente.