Logo que foi publicado, em 1994, Afirma Pereira inflamou a imprensa italiana. Em meio à campanha eleitoral que viria a dar a vitória ao partido Forza Italia, e colocaria Silvio Berlusconi pela primeira vez à frente do Conselho de Ministros, o livro foi interpretado por muitos como um ataque à direita católica e conservadora. Hoje a polêmica já se encontra um tanto esquecida, mas serve ainda como amostra do talento de Tabucchi que uma história sobre um velho jornalista gordo e solitário possa ter se tornado um símbolo na luta contra qualquer espécie de restrição aos direitos civis.

O romance se passa em Portugal, no final dos anos 1930, quando estava se firmando a ditadura salazarista que duraria até 1974. O Sr. Pereira, no entanto, não se preocupa com política. Responsável pelo caderno cultural de um jornal vespertino, ele se ocupa com suas leituras, as traduções de contos franceses e a preparação antecipada de necrológios de escritores famosos (não há tempo para escrever um bom texto de um dia para outro, ele defende). É viúvo, não tem filhos nem amigos próximos, e depois da morte da esposa parece ter se conformado a uma rotina quase imperturbável: frequentando os mesmos lugares, pedindo sempre os mesmos pratos e confessando seus problemas ao retrato da falecida.

A mudança na vida de Pereira começa em um belo dia de verão, quando ele se pega refletindo sobre a morte. Ele é católico, mas não consegue acreditar na ressurreição. Na alma sim, mas não na ressurreição da carne. Folheando uma revista literária, encontra um artigo que lhe interessa, ligado a essa questão. Entra então em contato com o seu autor, que ele descobre ser um jovem de vinte e poucos anos chamado Monteiro Rossi. Desde o princípio Pereira simpatiza com o rapaz, mas percebe nele também algo suspeito. Ao lhe oferecer, por exemplo, o posto de preparador dos necrológios, recebe como primeira proposta um elogio fúnebre de García Lorca, poeta e dramaturgo espanhol morto em circunstâncias obscuras no início da Guerra Civil Espanhola.

Todo o livro é organizado na forma de um longo depoimento, como se as ações de Pereira estivessem sendo colhidas para um processo, com constante repetição de expressões como “afirma Pereira que”, de modo que se estabelece de imediato certo grau de suspense. Afinal, em que teria se envolvido Pereira? A quem ele faz essa confissão? Essas são algumas das questões com que Tabucchi molda o texto, sem que venha, no entanto, a respondê-las explicitamente no final (vale a pena avisar). Afirma Pereira obviamente não pretende ser uma espécie de romance policial, e temos aqui, portanto, um daqueles casos em que a omissão de certas informações enriquece mais a obra, a despeito da nossa curiosidade, claro, mas a favor de uma maior riqueza de interpretações.

E apesar do clima subversivo que se instaura, com exceção de alguns momentos dos últimos capítulos, Pereira não tem nenhum contato com qualquer movimento de oposição a Salazar ou Franco. Ele permanece em grande parte fiel aos seus hábitos, e seus dias são relatados em uma linguagem simples, que se apega essencialmente aos fatos. Ainda assim, peça a peça, vai se construindo o perfil de uma mudança de consciência e de atitude. Como diz a teoria que o personagem adota a certa altura da história, não existe um único “eu”, mas uma pluralidade dentro de cada um de nós, sobre a qual se estabelece um “eu hegemônico”. Dessa forma, o que testemunhamos em Afirma Pereira é acima de tudo um exemplo dessa transição para uma nova personalidade dominante.

Ao final, além da conclusão dos eventos em que estiveram ligados o Sr. Pereira e Monteiro Rossi, desde a primeira página do livro, encontra-se também, paralelamente, a resposta à inquietação que Pereira demonstrara desde aqueles seus pensamentos sobre a morte num dia em que “Lisboa cintilava no azul de uma brisa atlântica”. Tabucchi consegue assim, como poucos, representar não apenas uma personalidade completa, mas também em transformação.

É por isso que estavam enganados aqueles que enxergavam no livro um instrumento político. Como o próprio Tabucchi esclareceu em diversas oportunidades, sua obra não se refere especificamente nem à situação presente da Itália, nem à ditadura em Portugal. Afirma Pereira é acima de tudo um romance sobre a consciência que não pode permanecer impassível frente à injustiça, um tema universal que encontra eco em todas as épocas.