Se você perdeu a primeira parte, é aconselhável lê-la. Você pode fazê-lo aqui.

A forma como Murakami consegue agarrar tantos fios para enfeixá-los em uma trama coesa (que consiga minimamente estabelecer ligações entre as duas tramas semi-paralelas que se desenvolvem ao longo dos capítulos) é realmente algo admirável. Basta tentar refazer o trajeto palmilhado pelos personagens ao longo da história para perceber como a constituição da trama central é de difícil rastreio, são muitos fios, muitas situações e eventos que se conjugam para desembocarem em um cenário específico.

Várias características de Kafka à beira-mar estão em 1Q84, não só na estrutura dos capítulos, mas algumas das marcas e temas de Murakami. Há a comunidade isolada que tenta subtrair-se da dinâmica da realidade (semelhante à comunidade na floresta, apresentada a Kafka Tamura pelos soldados da Segunda Guerra); há a porção de magia e de inexplicável que permeia o mundo em diversos aspectos (o evento com Nakata criança no topo do monte com a professora); há figuras míticas perambulando pelo mundo real, dando conselhos obscuros, opondo obstáculos e interagindo com os seres humanos (como Johnnie Walker ou o velho KFC) e assim por diante. Fãs de Murakami certamente se identificarão com uma porção de elementos do livro.

1Q84 é um livro que, apesar do tom surreal, consegue manter minimamente sólidas as colunas que sustentam seu ethos mágico. As tresloucadas experiências pelas quais passam os personagens, as descrições ricas (e às vezes até exaustivas) dos mecanismos e dos aspectos mágicos que circunscrevem a trama, e o próprio tom de história no sentido mais essencial do termo fazem do livro de Murakami uma leitura agradável e divertida. A linguagem que o autor usa é de fácil acesso, sem muitos rebuscos, e recheada de referências à música clássica, cinema, literatura e elementos da cultura pop, que funcionam como ótimos atrativos.

O “simples” fato de escrever uma resenha de 1Q84 é uma tarefa hercúlea, pois cada revelação de algum personagem, situação ou elemento qualquer, pode significar um spoiler que comprometerá a extensa arquitetura do livro. A descrição do plot em um parágrafo anterior é um exemplo disso, a reunião de tantos elementos torna a síntese um tanto confusa.

O único deslize do livro, na minha opinião, foi querer fazer jus ao apreço de Murakami por livros compridos. Por mais que eu não goste de considerar extensão um problema, em 1Q84 há um certo abuso de descrições minuciosas demais, que revelam poucos detalhes em relação a trama efetiva. Ao olhar para trás, você percebe que vários dos estofos dos personagens, as construções do background da trama ou mesmo a incorporação de elementos e sub-tramas truncam um pouco o ritmo do livro sem dar-lhe peso efetivo.

Ao mesmo tempo, são justamente esses pequenos detalhes que conferem a singularidade da história, pois a cada elemento que é introduzido, normalmente fica-se esperando saber mais sobre ele. Por isso é que ao final do livro fica-se pensando sobre eventos pouco explorados, aos quais não foi dado o tratamento de aprofundamento que esperávamos. O carisma que Murakami consegue conferir aos seus personagens é que nos causa esse sentimento de “ficarmos órfãos” de mais desse ou daquele elemento.

Apesar disso, certamente existem mais motivos para ler do que para não ler 1Q84.