Creio que a quantidade de resenhas dos livros do Saramago publicadas por mim aqui no Posfácio seja indício do quanto eu admiro a literatura do escritor português. Em cada uma das resenhas ressaltei alguma característica da escritura saramaguiana que me chamou a atenção, as quais fazem cada um de seus livros ótimas leituras. Diante desse histórico de resenhas é que escrever sobre o livro A caverna se torna tão difícil. Não quero me repetir nos argumentos construídos acerca de seus livros.
Buscando trazer algo de novo, creio que rastrear estratégias narrativas e usos de elementos literários para investigações filosóficas ofereça dois pontos que valem a pena ser explorados, em especial o segundo.
O romance foi publicado em 2000 e, como seu título e sua epígrafe indicam, a imagem da célebre caverna de Platão é uma referência central em sua escritura. Antes, porém, de uma aparição imediata, o elemento metafórico vai sendo construído conforme a história avança – algo bem parecido com aquela marca idiossincrática que ressaltei na resenha de A jangada de pedra, sobre a maneira íntima como estão ligados o argumento-questionamento e a trama propriamente dita.
A história começa com o oleiro viúvo Cipriano Algor, o protagonista, a dirigir sua furgoneta rumo ao Centro, para onde leva, além da louça oriunda da Olaria Algor, também seu genro Marçal Gacho, que lá trabalha como guarda. A paisagem onde se passa a história vai desfilando, passando desde a zona fronteiriça do centro – onde impera a pobreza – até o “cinturão verde”, que Cipriano Algor faz sempre questão de destacar que não é verde e sim tomada de estufas cinzentas. Seguimos Cipriano indo ao Centro e, depois, voltando à casa, onde sua filha, Marta, lhe espera para dar continuidade ao fabrico das louças de barro.
No horizonte da história vão assomando os problemas que lhe servirão de motor. Cipriano Algor foi comunicado de que suas louças não estão mais vendendo por conta do aumento da oferta de louças de plástico, com as quais não pode concorrer, de modo que a compra de suas mercadorias pelo Centro foi parcial e provisoriamente suspensa. Logo no início da história, também, fica-se sabendo que há a possibilidade de Marçal tornar-se um guarda residente e, como resultado da promoção, ele ganhará um apartamento no cobiçado Centro, para onde supostamente deverão ir tanto Marta quanto Cipriano Algor.
Ainda participam da história o cão Achado, cujo nome explica sua condição de criatura encontrada por Cipriano Algor para tornar-se fiel escudeiro do velho oleiro; e a viúva Isaura Estudiosa, vizinha da olaria, em relação a quem Cipriano Algor nutre sentimentos confusos, os quais o levam a trocar-lhe um cântaro defeituoso com muita solicitude e sem nada cobrar.
O livro se desenvolve dessa maneira, em torno desses personagens e lidando com esses conflitos conforme Cipriano Algor busca enfrentar a situação de xeque em que se encontra. A diminuição das vendas força ele e sua filha a pensarem em possíveis estratégias para tornarem-se interessantes ao Centro e seu comércio novamente, surgindo aí a ideia de fabricarem estatuetas de barro para ornamentação. Descrições primorosas do processo de produção das figuras de barro e da olaria como um todo surgem nesse momento, sublinhando a admiração de Saramago pelos trabalhos artesanais e pelos artífices que com perícia e engenhosidade o executam. Isso tudo, vale lembrar, ocorre tendo como pano de fundo as indústrias cinzentas do Centro, com as quais Cipriano Algor e sua filha competem diretamente.
Saramago nos conta a história de modo a nos fazer admirar a perseverança de Cipriano Algor, mas sem que, para essa empatia, a melancolia seja usada como recurso principal. A melancolia está lá, devidamente incrustada na situação em que se encontra o oleiro, mas ela cumpre um papel menor dentro de nossa identificação com o drama humano que é um velho tornar-se menos e menos relevante diante das mudanças e ter de, nesse ínterim, submeter-se aos mandos e desmandos de um mundo que já não parece mais poder chamar de seu. O ocaso da olaria representa para ele muito mais do que uma perda material, representa uma ruptura ontológica com um dos elementos que o definiam enquanto sujeito, isto é, sua profissão como oleiro, sua inserção social enquanto fabricante das louças que os outros usam para suas refeições. Além disso, a perda dessa fonte de sustento significa também que deverá se resignar às investidas da filha quanto a morar no Centro, no apartamento que Marçal haverá de ganhar quando de sua promoção a guarda residente.
Neste ponto a identificação filosófica e ideológica de Saramago com o materialismo histórico-dialético se torna muito nítida, embora esteja definitivamente longe de pressupostos propagandísticos ou de reducionismos esquemáticos ou ideologizantes. Saramago explora através de Cipriano Algor a dimensão e o peso ontológicos do trabalho para a constituição do sujeito enquanto indivíduo e enquanto ser social, uma das preocupações do marxismo desde sua origem.
Isso se torna ainda mais claro nos momentos em que o Centro toma a cena. As descrições daquele ambiente como algo monótono, planejado ao extremo, tomado de construções estranhas, fábricas e elementos típicos da modernidade contribuem para contrastá-lo com a realidade fora dele, em especial ao ambiente aparentemente campestre da olaria. Além disso, há ainda o “cinturão verde”, lugar onde são produzidos os alimentos. Apesar do nome, o “cinturão verde” não possui nada de verde devido às estufas e métodos modernos de cultivo. A frieza desses ambientes aparece recortada contra o calor e humanidade do ofício e da vida de Cipriano Algor e sua filha Marta na olaria.
Além de uma interpretação crítica acerca da modernidade, A caverna traz ainda um cotejo filosófico bastante frutífero a respeito desse mesmo assunto: justamente aquele ensejado pela imagem da caverna de Platão. São dois os momentos em que essa metáfora aparece de maneira mais direta, primeiramente quando Cipriano Algor tem um sonho, e em segundo lugar com a descoberta de uma caverna, durante uma escavação, nas profundezas do Centro.
Em seu sonho, Cipriano Algor vê-se dentro do forno de sua olaria. Pensativo por conta da notícia de que o Centro não mais compraria o fruto de seu trabalho, ele se deixa ficar sentado de costas para a fogueira central da construção, fitando a parede conforme sombras são nela projetadas. O sonho tem um quê de augúrio, como se narrativas proféticas estivessem se desenhando na parede do forno conforme o fogo crepitava e o sono de Cipriano Algor lho permitia.
Na escavação do Centro não é o caráter onírico que impressiona, mas a concreta e palpável realidade dos fatos. Uma caverna perdida vem a lume, e a disposição dos corpos e da fogueira nela presentes carrega uma semelhança aterradora com a imagem platônica, o que leva Marçal e Cipriano a epifanias pungentes e decisões extremas a respeito de suas existências. Uma cena com grande potencial dramático e com poderosos desdobramentos reflexivos.
Eis revelada a grande referência do romance, e eis descortinada a leitura de Saramago sobre a realidade que retratou. A desconfortável atualidade do mito de Platão encontra-se vivificado na situação de Cipriano Algor, cuja vida encontra-se subjugada ao destino que lhe concede o Centro: o que ele vê como sua realidade é a extensão da possibilidade permitida pela entidade maior, o orwelliano Centro cuja demanda quase lhe determina a vida. Isso sem contar a Marçal, também amarrado por todos os lados pelas contingências desse mesmo ambiente de poder.
Marcando sua narrativa com a típica e virtuosa prosa de sua lavra, Saramago não abdica de pôr em questão o mundo contemporâneo em suas contradições, dilemas e tragédias, fazendo com que sua escritura junte o engajamento lúcido de um crítico da realidade com as preocupações estéticas de um grande artista.