Se você não leu a coluna do mês passado, é uma boa dar uma olhadela rápida nela.

Lá eu explorava a constituição do romance a partir do que Lukács chamou de “mundo fragmentado”, em contraste com a organicidade típica da Antiguidade, sendo, portanto, essa, a principal razão pela qual o romance se distingue tão nitidamente da epopeia.

Se o romance buscava a unidade que era encontrada antigamente, não se pode dizer que essa fosse a única de suas características. Talvez fosse a mais marcante, inclusive por conta das inúmeras lutas contestatórias e projetos de sociedade que se digladiavam ainda de forma embrionária no caldeirão em que o romance foi fervido, mas existem diversos fatores que precisam ser levados em consideração, inclusive para se matizar a compreensão de tão vasto e multifacetado “formato”.

Para começar a descascar essa questão, podemos lembrar que um dos marcos do que se convencionou chamar de “romance” foram as obras do inglês Samuel Richardson, principalmente, Pamela e Clarissa, dois romances epistolares que são tidos por alguns pesquisadores e estudiosos como os livros que inauguraram o “formato” romance.

Ora, se tomarmos essa datação como verdadeira (ou pelo menos factível o suficiente para nos situarmos no tempo e no espaço) nos remetemos a Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, e estaremos falando de um dos membros de um estrato peculiar da sociedade inglesa, marcada cada vez mais pela ideologia liberal.

As vicissitudes aristocráticas ainda permeavam a vida na sociedade inglesa, e o poder econômico encontrava-se ligado ainda a característica pessoal e à linhagem familiar. Esse aspecto, porém, estava passando por mudanças drásticas, já que com o avanço de relações de produção tipicamente capitalistas e a centralização do poder cada vez mais amplamente na posse de capital, a burguesia se tornava cada vez mais poderosa e dominante. O liberalismo era a expressão de sua ideologia e a forma pela qual ela procurava legitimar-se e legitimar a realidade da forma como ela estava sendo constituída.

Não à toa, por exemplo, que estudos sobre as produções literárias da época destacam como uma das principais características dos romances desse período o enaltecimento do indivíduo. Terry Eagleton descreve esse processo brevemente no primeiro capítulo (A Ascensão do Inglês) do livro Teoria Literária – Uma Introdução. E vai mais longe ainda, dizendo que o romance se tornou um ótimo veículo de ideologia burguesa nesse período, pois apresentava uma visão de mundo que procurava toldar a visão dos sujeitos leitores para o zeitgeist que se constituía aos poucos na Inglaterra.

Ian Watt também explora esse tema em Mitos do Individualismo Moderno, onde discute obras de Defoe, Goethe, Cervantes e outros: ele procura mostrar como essas histórias carregam informações interessantes a respeito do processo histórico marcado pelo descolamento do indivíduo em relação à coletividade, exaltando sua engenhosidade e capacidade de ascender a posições de maior prestígio enquanto sujeito isolado. Essa visão de mundo, centrada no indivíduo, colocava em voga o que posteriormente viria a se tornar o arquétipo do self made man na corrida do ouro (Gold Rush) nos Estados Unidos.

Aliás, vale lembrar que foi no século XVIII que ocorreram as sublevações estadunidenses contra a Inglaterra. As Treze Colônias reivindicaram sua independência embaladas pelos ideais iluministas mas também por romances epistolares franceses (e por razões econômicas e políticas, é claro), vários deles moldados pelo individualismo burguês, entre outros dos pilares da ideologia liberal.

É curioso observar como essa característica do indivíduo em detrimento da coletividade (o oposto do que ocorria na epopeia) transparece inclusive nos títulos. Várias das produções dessa época carregam já no título o nome do principal personagem, tal como Robinson Crusoé, Fausto, Tom Jones, David Copperfield, Pamela, Heloísa, A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, Cândido, Emílio, Os Sofrimentos do Jovem Werther e assim por diante.

Não se trata aqui de generalizar os romances, afinal, é um “gênero” com tradição e vastidão suficientemente elástica para ser matizada e estudada em suas peculiaridades. Não se trata também de rotular a priori todos os romances, colocando definições estanques como “burguês” ou “não-burguês”, mas de perceber como o diálogo da Literatura com a História além de prolífico, reverbera para ambas as direções, imprimindo marcas e deixando rastros que nos ajudam a compreender a dinâmica da História do homem e, como diria Nancy Huston, de sua obstinação em construir fábulas e narrativas para explicar a si próprio e o mundo a seu redor.