Isaac Bashevis Singer se vale de uma estratégia no mínimo interessante para escrever suas histórias: ele não tem medo de deixar o centro da cena literária para dar lugar a histórias de pessoas comuns, contando-as de próprio punho, mas tendo-as sorvido de interlocutores com trajetórias pitorescas e expressivas. Toda a trama de O penitente foi contada para ele em dois dias, numa conversa que manteve com um homem que o procurou para contar a história de como viera parar ali e o que pensava sobre o que tinha visto e sentido.

Tal peculiaridade da literatura de Singer lhe valeu não somente belíssimas histórias, profundamente verossímeis e de valor singular, já que se referem diretamente a experiências vividas e sentidas; mas também um bocado de premiações e reconhecimento internacional, inclusive a láurea que talvez seja a mais significativa de todas no campo da literatura, o Prêmio Nobel, em 1978.

Quem nos conta a história (“traduzida” em literatura pelo autor) é Joseph Shapiro, um judeu que ao enfrentar os reveses de uma carreira incerta e uma cena conjugal nada promissora, resolve deixar de lado ambos e seguir em uma vida que se desligue dos elementos que lhe corromperam a existência anterior, o que, no caso dele, o leva a se aproximar mais dos princípios mais tradicionais (e às vezes ortodoxos) do judaísmo.

Buscando sentido em sua existência, Joseph Shapiro encontra um grupo religioso que observa com severidade os princípios do judaísmo, orando e fazendo penitências regularmente, de acordo com os ensinamentos mais antigos. Vendo que nesse contexto encontraria a paz de espírito que tanto buscava, Shapiro permanece algum tempo com o grupo. O ancião que conduz o grupo concede ao protagonista profundos mergulhos de sabedoria antiga, moldados pela constância, que irão acompanhar Joseph pelo resto do livro. A jornada empreendida por ele se assemelha a trajetória de Sidarta, no livro homônimo de Hermann Hesse.

Após esse encontro, Joseph passa ainda por diversas experiências, todas relatadas a Singer, que as sintetiza em uma escrita enxuta porém elegante e eloqüente. Embora ele não tenha se convertido de forma absoluta aos preceitos nos quais encontrou tranqüilidade, a penitência passa a incorporar seu conjunto de práticas cotidianas, já que essa passa a ser sua condição, um pecador esporádico que penitencia constantemente, visto que essa é a única forma que ele possui para expurgar-se e existir de forma coerente.

Se compararmos Singer a outro famoso representante da literatura judaica, Kertész, veremos um contraste bastante interessante: a pujança dramática de Singer é muito mais velada do que a agressividade de sentimentos e palavras de Kertész, mas nem por isso menos emblemática. Há de se considerar a diferença de contexto, tanto temporal quanto geográfico (e consequentemente cultural e histórico), mas se Singer não nos acerta no estômago com a força de Kertész, certamente nos dá um escopo de reflexão extenso e relevante.

A saga de Shapiro evoca muito mais do que fragmentos da vida judaica, exprime a situação do homem contemporâneo. O protagonista de O penitente encontra sentido nos contextos simples, onde sua existência parece ter relevância e onde se sente em comunhão com suas crenças. Ou seja, se trata de um “mundo” onde ele não se sente estranho, um “mundo” onde encontra mais humanidade apesar de, paradoxalmente, ter de seguir uma série de rituais e preceitos que lhe são apresentados pela religião.

É intrigante como a narrativa de Singer camufla na condição de um judeu uma série de aspectos da “condição contemporânea”. As comunidades que seguem a risca preceitos tradicionais e ortodoxos do judaísmo surgem como paraísos perdidos, vistos à luz da nostalgia. Embora como judeu ele se esforce em reconhecer e defender certas tendências e práticas religiosas, Singer alcança um grau de universalidade muito emblemático, que diz respeito a todos nós em alguma medida.

A desumanidade com que se deparou Shapiro não está restrita a sua individualidade, mas enfeixa os dilemas do mundo moderno, expresso, por exemplo, em passagens que são aplicáveis tanto para judeus como para boa parte dos sujeitos que vivem no mundo contemporâneo, como a seguinte:

“O homem moderno injetou competição em áreas em que ela não pertence. Toda vida moderna é uma série de provas para determinar quem é o mais alto, o maior, o mais forte; capaz de atuar melhor que os outros.” (p. 142)

Diante da perversidade estrutural do mundo, resta a penitência individual para tentar purga-lo de alguma forma. Essa é a condição de Shapiro, e, ainda que não seja o único, é um veredicto dramático para a existência contemporânea.